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quinta-feira, 19 de agosto de 2010

A Engenharia sem fronteiras do século 21

por Sheila Sacks

(na foto, o elevador do Cantagalo na favela Pavão-Pavãozinho que se conecta com o metrô de Ipanema)


Em 2008 a engenharia mundial escolheu o Brasil para realizar o seu maior encontro. A World Engineers Convention (WEC) reuniu em Brasília 5.200 engenheiros de 40 países para renovar os seus conhecimentos tecnológicos e também debater temas de relevância como a responsabilidade social, a ética, a inclusão e a inovação sem degradação ambiental. 


A convenção foi aberta pelo presidente Lula que na ocasião reafirmou a importância da engenharia na economia, no setor produtivo e no trabalho. O presidente destacou ainda o papel fundamental da profissão na implementação de projetos de transformação das cidades e da imensa capacidade do setor de inovar e criar novas realidades “mesmo sobre os escombros de modelos ultrapassados.”

Como seria natural, o presidente Lula citou o desafio do PAC – o Programa de Aceleração do Crescimento – com suas obras nas áreas de infraestrutura, energia, logística, social e urbana. Uma oportunidade valiosa, segundo ele, para os engenheiros que possuem “a inovação em seu DNA”. Para Lula, vitoriosa será a nação que melhor aproveitar a infinita capacidade humana de reinvenção da vida e de superação de cada problema que se apresenta.


No Rio de Janeiro, o trabalho de engenharia urbana que vem sendo executado nas favelas, através do PAC, introduziu novas diretrizes e padrões de comportamento social nos profissionais engajados no projeto. Engenheiros e arquitetos têm ao seu lado, participando e atuando no dia a dia, técnicos da área social que acompanham o desenrolar das obras nas comunidades. 

Há três anos o programa está promovendo uma inédita ponte de diálogo e entendimento com os moradores das favelas beneficiadas, estimulando os moradores a interagir e contribuir para que as melhorias introduzidas – acessos, novas moradias, escolas, equipamentos esportivos, áreas de lazer etc – sejam compartilhadas e mantidas de forma consciente e com cidadania. ( na foto, apartamentos construídos na favela de Manguinhos)

Esse tipo de abordagem mais humana e social por parte da engenharia, focalizada nos problemas das pessoas e das comunidades menos favorecidas, desabrochou de fato com o PAC das favelas. Seus objetivos se assemelham às propostas da organização internacional “Engenheiros sem Fronteiras” (Engineers Without Borders – EWB), criada em 2000 nos Estados Unidos, e que atualmente está presente em mais de 40 países, inclusive no Brasil. 

Com sede na Universidade Federal de Viçosa (UFV), em Minas Gerais, o núcleo brasileiro foi implantado em 2007 na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP) e transferido para a UFV em junho de 2010. Na visão da organização, a engenharia deve atuar como uma ferramenta a serviço da equidade e da construção da dignidade humana, conciliando o conhecimento acadêmico e as necessidades dos segmentos mais carentes da população. Missão que vem sendo cumprida pelos engenheiros e arquitetos dos órgãos públicos do governo estadual do Rio de Janeiro em relação às obras do PAC, em consonância com as diretrizes do governo federal. 

Portanto, já se afigura lógica a participação brasileira na próxima WEC, a ser realizada em 2011 em Genebra (Suíça), se reportar à experiência e aos resultados positivos da vertendo social e urbana do PAC que tem transformado as condições de vida dos habitantes das favelas. (Na foto, construção do teleférico no Complexo de favelas do Alemão que vai se conectar com a via férrea). 

Propósito Coletivo

A Construção Civil, como tema expositivo, costumeiramente atrai abordagens tecnológicas associadas às inovações e ao aperfeiçoamento de itens técnicos tendo em vista a própria natureza científica e matemática do serviço e a formação específica e especializada de seus profissionais. No campo do trabalho aplicado, a prioridade está centrada na escolha dos materiais, equipamentos e maquinário a serem utilizados nas edificações e que devem, virtuosamente, se conjugarem com a qualidade e a funcionalidade desejáveis, adequando-se ainda a uma planilha de custos e prazos previamente calculada. A meta final é a entrega da obra de acordo com o planejamento e a expectativa iniciais, fatores que se preservados até o concluir dos serviços vão garantir o sucesso da empreitada em termos técnicos e contratuais.

Semelhante ao que ocorre, há décadas, nos projetos endereçados à área privada, agora também no setor público agrega-se à responsabilidade técnica do gestor a variante do compromisso sócioeconômico da cidadania, um valor já percebido e que começa a ser cobrado pelas comunidades beneficiadas pelas obras. Se em tempos passados o responsável por uma obra de edificação pública tinha como única preocupação cumprir, basicamente, os requisitos técnicos e burocráticos que acompanham esse tipo de trabalho, alijando-se de qualquer ação participativa que pudesse ser interpretada como um comprometimento político, hoje essa visão de gestor público está superada face à percepção de que atender bem o propósito coletivo é atribuição básica de uma empresa que gerencia obras com recursos governamentais.


Gestão com motivação e solidariedade


Essa mudança de ótica nas instituições públicas tem ocorrido sob a égide do núcleo governamental que, em anos recentes, vem promovendo a capacitação das gestões e dos gestores com a introdução de modelos contemporâneos de administração e o incremento de cursos e seminários voltados aos novos conceitos, normas, condutas e valores pró-ativos que combinem conhecimento e tecnologia com resultados que incluam a satisfação coletiva. É um novo paradigma de gestão organizacional, pautado no ícone da contínua aprendizagem e aprimoramento, que estimula a incorporação de padrões de cooperação, participação, confiança e de solidariedade.

Especialistas em gestão como Noel Tichy, professor de comportamento organizacional da Universidade de Michigan (EUA) e autor de dezenas de livros sobre o tema, considera de profunda importância motivar os funcionários com uma visão empolgante do trabalho que realizam. Exemplo desse modelo é relatado por Brian Dumaine, antigo editor da revista norte-americana “Fortune”, no artigo “Por que nós trabalhamos?”. 


O autor se vale de uma parábola para reafirmar a importância da noção de “missão” no cotidiano das tarefas. Citando três tipos de operários que executam o mesmo tipo de serviço – talhar uma pedra com um martelo e um cinzel – Dumaine conta que o primeiro se sente frustrado e irritado porque considera aviltante o trabalho que faz. O segundo, ao explicar que talha a pedra para um prédio, não parece nem zangado nem satisfeito. Já o terceiro cantarola feliz e, enquanto esculpe a pedra, responde com orgulho que está construindo uma catedral.

O aprendizado que evolui no cotidiano

Dessa forma, a tradicional noção de capacitação técnica não seria o valor preponderante a atuar na condução do trabalho em uma empresa. O engenheiro aeroespacial Peter Senge, Ph.D. em administração organizacional pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (EUA) e autor do best-seller “A Quinta Disciplina” (1990), aponta o engajamento do profissional “em relação aos princípios, às diretrizes e ao futuro que a empresa pretende criar e alcançar”, como um fator decisivo na evolução sustentável e competitiva da organização. A essa disciplina apreendida pelo grupo funcional ele chama de “visão compartilhada”.

Em entrevista à revista norte-americana “HSM Management” em julho de 1998, Senge questiona alguns mitos corporativos como a excelência de programas de treinamento e a importância da tecnologia de informação. Para ele é preciso pensar no tipo de aprendizado que a tecnologia proporciona, já que uma pessoa pode até receber mais informações graças à tecnologia, mas, se não possuir as capacidades necessárias para aproveitá-las, de nada adiantará, visto que a informação não cria aprendizado. ”Esse é um enorme mal-entendido que afeta muitas pessoas. A informação só pode nos ajudar a aprender alguma coisa que já entendemos.” Quanto aos programas de treinamento, Senge considera que poucos profissionais aprendem as coisas que são realmente importantes nesses programas. “O aprendizado ocorre no dia-a-dia, ao longo do tempo e sempre acontece quando as pessoas estão às voltas com questões essenciais ou se veem diante de desafios.“


O desenvolvimento social como meta


Desde os anos de 1970, o tema da responsabilidade social das empresas em relação às comunidades onde estão inseridas tem sido foco de debates e de uma extensa literatura. Nota-se que a filosofia desse conceito é abrangente, englobando problemas sociais, econômicos e ambientais como pobreza, desemprego, segurança no trabalho, poluição e desmatamento, além de aspectos legais e jurídicos referentes a desapropriações e remoção de moradores, para citar alguns. Porém, o entendimento mais comum do termo é aquele que traduz a responsabilidade social empresarial como um comportamento socialmente responsável, do ponto de vista ético, praticado pelas organizações em suas atividades-fins.

Conhecidos teóricos da administração, como o filósofo e economista de origem austríaca Peter Drucker (1909-2005), e o americano Robert M. Grant, consultor e autor do livro “Análise da Estratégia Contemporânea” (1995), destacam a necessidade de uma gestão de empresas voltada para a evolução da sociedade moderna, já que as empresas são importantes e influentes agentes sociais, e seus gestores são percebidos como lideranças pelas comunidades onde atuam.

Na obra “O Líder do Futuro”, os autores Hesselbein, Goldsmith e Beckard enfocam o lado humanístico na condução empresarial. Para eles, o propósito de uma administração organizacional deve ser o de tornar eficazes os pontos fortes das pessoas e irrelevantes as suas fraquezas. O livro datado de 1996 advoga que as posturas serão mais úteis do que as habilidades e que as futuras lideranças vão flexibilizar as hierarquias, construindo um sistema de trabalho mais fluido: “O maior capital das empresas serão as pessoas que as compõem. Conseguir o comprometimento delas e colher o fruto de suas mentes criadoras deverá ser o grande desafio do século 21.”


A importância de fazer a coisa certa

Esse novo conceito de liderança se afasta do primitivo modelo de liderança carismática, onde não havia espaço para a argumentação ou contestação. Um tipo de comando criticado pelo próprio Drucker - o cultuado guru “inventor da gestão” - que aos 95 anos e em sua última entrevista à imprensa norte-americana (reproduzida pela revista “Exame” em fevereiro de 2006, sob o título “Liderança é Conversa Fiada”) questiona a fixação dos gestores executivos pela formação de líderes: “É um erro afirmar que as escolas de negócios formam líderes. Sua tarefa consiste em formar medíocres competentes para que realizem um trabalho competente Permita-me dizer com toda a sinceridade: não acredito em líderes. Toda essa conversa sobre líderes é uma bobagem muito perigosa. É tudo conversa fiada. Entristece-me constatar que, encerrado o século 20, com líderes como Hitler, Stálin e Mao, as pessoas ainda estejam em busca de quem as comande, apesar de todo esse mau exemplo. Acho que tivemos carisma demais nos últimos 100 anos.”

Autor de mais de 30 livros sobre práticas de administração de empresas, Drucker sempre acreditou que os bons resultados obtidos em uma gestão não advêm das soluções de problemas e sim de se saber explorar as novas oportunidades que se apresentam. Também alertava para a interpretação confusa dos gestores sobre os termos “eficácia – fazer a coisa certa – e eficiência – fazer certo as coisas. Segundo o teórico “é difícil achar algo tão inútil quanto fazer com grande eficiência algo que simplesmente não deveria ser feito”. Mas mesmo assim, assinalava Druker, as ferramentas utilizadas - sobretudo conceitos contábeis e dados - estavam todas voltadas à eficiência. “O que precisamos é de um jeito de identificar áreas de eficácia (de possíveis resultados relevantes) e de um método para nos concentrarmos nelas”, recomendava.


Aprender, desaprender e reaprender

Em 1930, na obra “O Mal-Estar na Civilização”, o fundador da psicanálise, Sigmund Freud (1856-1939), já especificava as três grandes forças causadoras da infelicidade no ser humano: o próprio corpo “condenado à decadência e à dissolução”; o mundo exterior “repressivo” e “ameaçador”:; e os relacionamentos com os outros, essa última correspondendo à frustração mais difícil de se lidar e adequadamente rotulada de “a fonte social do sofrimento”. Reconhecendo-se a importância das relações pessoais no contexto das organizações, torna-se um desafio para qualquer gestor desenvolver um clima de harmonia, integração e satisfação em sua comunidade funcional, face à diversidade dos “modelos mentais” inerentes a cada indivíduo.

No livro “A Força dos Modelos Mentais” (2005), os consultores norte-americanos Yoram Wind e Colin Crook explicam que esses processos cerebrais e emocionais - frutos de influências familiares, escolares, culturais e religiosas que se somam às experiências e vivências na fase adulta - moldam todos os aspectos da vida de uma pessoa e muitas vezes, no âmbito profissional, eles não acompanham ou não correspondem à realidade do momento, dificultando e limitando a evolução de uma carreira que poderia ser promissora. Caberia, pois, aos profissionais se reestruturarem, desfazendo-se de antigos referenciais e adaptando-se aos novos conceitos de competência e padrões de comportamento sinalizados pela empresa. “Daí a importância de aprender, desaprender e reaprender para construir nossos conhecimentos sob novos paradigmas”, desafiam Wind e Crook.


O trabalho que gera satisfação

Mas, para Freud a insatisfação humana é um fato imutável porque “nascemos com um programa inviável que é atender aos nossos instintos, mas o mundo não o permite”. Ou seja, o homem, faça o que fizer, estará condenado a conviver com a frustração na vida privada e profissional. Logo, gerenciar atividades e serviços da mais alta complexidade e tecnologia empresarial como grandes obras de engenharia também é administrar expectativas pessoais que não devem ser desconsideradas ou minimizadas pelos gestores.

Em uma pesquisa na cidade de Pittsburgh, na Pensilvânia (EUA), na década de 1950, quando a localidade ainda era um grande pólo siderúrgico e o maior produtor de aço do mundo, o professor e psicólogo Frederick Herzberg, falecido em 2000, realizou entrevistas com 200 engenheiros e contadores de onze indústrias da região para descobrir os fatores que geravam satisfação e insatisfação no ambiente de trabalho. Percebeu que elementos relacionados com o conteúdo do trabalho (motivação), tais como o desenvolvimento do potencial intelectual, a possibilidade de crescimento profissional e a autorrealização, eram fortes indutores para a criação de um clima de satisfação entre os funcionários. Por outro lado constatou que o contexto físico e as condições de trabalho e de remuneração, mesmo apresentando ótimos padrões, não aumentavam o grau de satisfação entre os empregados, apesar de funcionarem como barreiras de contenção contra a insatisfação.

Esse estudo, compilado no livro “A Motivação para o Trabalho” (1959), serviu de base para outras centenas de observações e análises sobre modelos e teorias de administração produzidas ao longo do tempo que têm ajudado a redefinir o conceito de trabalho empresarial nas organizações públicas e privadas, incorporando às atividades econômicas e tecnológicas valores como o capital intelectual, o talento e a inovação, ferramentas insuperáveis na produção de ações que objetivem resultados promissores nos ambientes internos e externos em que atuam.


A singularidade do ser humano

Com essa opção pela gestão social, que se traduz por um gerenciamento mais participativo e solidário, priorizando o diálogo no desenvolvimento das pessoas e no interesse público das comunidades, as empresas vão se aproximando, pouco a pouco e de forma extraordinária, da filosofia política de Hannah Arendt (1906-1975) – uma das mais cultuadas pensadoras do século 20 –, algo impensável há alguns anos. Isso porque para Arendt, autora de “A Condição Humana” (1958), a suposição de que a identidade de uma pessoa transcenda, em grandeza e importância, tudo o que ela possa fazer ou produzir, seria um elemento indispensável da dignidade humana. Juntamente com a assombrosa capacidade de agir do ser humano, da qual, segundo a filósofa, “se pode esperar o inesperado e o infinitamente improvável, independentemente da produção de coisas, porque cada homem é singular, de sorte que, a cada nascimento, vem ao mundo algo singularmente novo”.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

O PAC e a nova engenharia urbana


por Sheila Sacks

Três anos após o seu lançamento, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo federal, focado nas favelas do Rio de Janeiro, chega a 2010 com um saldo de R$ 1,5 bilhão investidos na urbanização e melhorias das condições de habitação e mobilidade desses aglomerados humanos. Atuando principalmente nas favelas dos morros Dona Marta, Pavão-Pavãozinho, Manguinhos, Complexo do Alemão e Rocinha – um universo em torno de 250 mil habitantes - o programa construiu, nesse período, ruas, praças, passarela, escolas, biblioteca, quadras de esporte, elevadores e um teleférico em fase de conclusão. De mãos dadas com o governo do Estado, que elaborou os projetos e mobilizou engenheiros, arquitetos e técnicos de planejamento e desenvolvimento urbano para a execução das obras, o Pac das favelas tem a aprovação dos formadores de opinião, da população da cidade e dos habitantes das comunidades beneficiadas.

No 5º Fórum Mundial de Urbanismo realizado no Rio de Janeiro (março/2010), o diretor geral da “Aliança das Cidades”, Willim Cobbett, um dos maiores especialistas em urbanização de favelas, parabenizou o Brasil por seu importante trabalho nessa área. Chefiando uma organização internacional que reúne 24 países com o objetivo de reduzir a pobreza nas áreas urbanas, Cobbett foi secretário de habitação na cidade do Cabo, na África do Sul, de 1996 a 1998, e advoga a inclusão das favelas às cidades. “Quando o Estado deixa um lugar, ele é ocupado pelo poder paralelo”, alerta. “ A urbanização é um meio eficaz de o Estado retomar o controle.”

Outro participante do encontro que se mostrou admirado com as obras de urbanização nos morros cariocas foi o presidente da Associação Internacional de Moradores de Favela, o indiano Jockin Arputhan. “É um bom modelo para se adotar em todos os lugares do mundo”, afirmou.

Consciente da necessidade de prosseguir nos projetos de melhoria desses populosos núcleos informais e integrá-los ao cotidiano das cidades brasileiras, o governo federal ao lançar o PAC 2 , em março de 2010, privilegiou recursos da ordem de 23 bilhões de reais para as ações a serem implementadas nos próximos quatro anos no eixo denominado “Comunidade Cidadã”. Os investimentos vão criar postos de Saúde (UPAs – Unidades de Pronto Atendimento – e UBS – Unidades Básicas de Saúde), creches e pré-escolas, quadras esportivas, “Praças do PAC” e postos de polícias comunitárias.

Para Cobbertt, apesar de ainda haver bastante trabalho pela frente, o Brasil mostra vontade política para transformar a vida dos moradores das favelas. “ O país inclusive fez alterações em seu Estatuto das Cidades para poder regularizar o acesso à terra, e acertou ao criar o Ministério das Cidades - existente em pouco países – para gerenciar a área de planejamento urbano.”

Em janeiro de 2008, diante do desafio que o PAC das favelas se apresentava para a engenharia brasileira – notadamente em termos de responsabilidade social – escrevi o artigo abaixo:

QUESTÃO URBANA
PAC aciona engenharia-cidadã

Por conta do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), lançado no início de 2007, a engenharia pública direcionada para as camadas mais pobres da população virou estrela na mídia. Pelo menos no estado do Rio de Janeiro, o anúncio de investimentos da ordem de 910 milhões de reais para as obras de urbanização em três grandes favelas do Rio – a de Manguinhos, Complexo do Alemão e da Rocinha –, onde vivem 245 mil pessoas, abriu espaço para a chamada "construção civil com responsabilidade social" ser apresentada ao grande público.

As metas deste modelo de engenharia mais consciente, voltado para a inclusão e a justiça social, é um fator positivo a ser realçado no PAC. Segundo dados do governo federal, serão investidos na área de urbanização de favelas, até 2010, em todo o país, em torno de 40 bilhões de reais. Nas três favelas cariocas – uma espécie de vitrine do programa –, além da construção de novas residências, serão implantados centros culturais e esportivos, áreas de lazer, creches, escolas técnicas, postos de saúde, bibliotecas e sistemas de abastecimento de água, esgoto e iluminação pública. Para a integração com o transporte regular serão construídos teleféricos e planos inclinados, já que as favelas cariocas situam-se basicamente em morros, muitos deles de difícil acesso.

O narcotráfico, uma dúvida

Os projetos arquitetônicos que estão sendo desenvolvidos para atender a essa nova clientela, ainda pouco conhecida da engenharia brasileira, se configuram como um saudável desafio para os nossos profissionais. É bem verdade que os engenheiros e arquitetos que trabalham no serviço público estão acostumados a acompanhar projetos dirigidos às comunidades em geral, como a construção de escolas públicas, hospitais, delegacias, penitenciárias, fóruns, estádios, teatros etc. Mas, especificamente no PAC das favelas, o enfoque é diferente porque estes núcleos habitacionais nunca foram o centro de uma política abrangente de ocupação social que incluísse a engenharia como ponta de lança de uma estratégia governamental.

A complexidade da missão fez com que os profissionais envolvidos com a tarefa se deslocassem até a cidade de Medellín, na Colômbia, para ver in loco as alternativas utilizadas nesse país no tocante à urbanização dessas comunidades pobres que, em comum com as nossas favelas, têm um referencial de peso: a cultura do narcotráfico. Semelhante ao Rio, Medellín tem mais de 1 milhão de pessoas que vivem em favelas e, de acordo com uma pesquisa realizada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), 70% das pessoas que moram nas favelas cariocas não querem se mudar.

Segundo o site oficial do governo do estado do Rio, as obras de urbanização das favelas começam em fevereiro próximo (2008) e vão durar três anos. Uma das iniciativas para engajar os moradores na empreitada foi abrir vagas de trabalho dentro das próprias comunidades (a previsão é de 20 mil empregos diretos) e contatar as diversas associações e movimentos sociais existentes nas favelas para ouvir e entender as suas reivindicações. Porém, nas margens de todo o amplo programa de engenharia que será implementado, uma dúvida persiste: como irão se comportar os grupos ligados ao narcotráfico – que têm uma atuação subterrânea, mas nem por isso menos atuante – no cotidiano dessas comunidades?

Contagem regressiva

Em Medellín, o programa de urbanização incluiu acordos de paz com as milícias armadas e pactos de convivência com jovens cooptados pelo narcotráfico que foram desmobilizados, paulatinamente. Esse processo se iniciou há quase 15 anos, quando o índice de homicídios assustava a sociedade colombiana. Na cidade do Rio, a violência, além de gerar um clima de contínua insegurança, tem mexido com os bolsos dos moradores do asfalto. Tanto nas zonas sul ou norte, os apartamentos vizinhos às favelas, muitas deles de alto luxo, estão se desvalorizando. Em contrapartida, depois da confirmação das obras do PAC, as moradias nas favelas já triplicaram de preço. Um quebra-cabeça para as autoridades estaduais, que procuram criar, na turma que reside nas chamadas áreas nobres e que paga altos impostos, uma disposição de boa vontade em relação ao projeto de urbanização das favelas.

Por sua vez, a geografia do Rio, privilegiada em belezas naturais, tornou-se, com o passar dos anos, um algoz insensível, cercando os bairros de trincheiras invisíveis e tornando os seus moradores reféns de sua topografia. As favelas abraçam a cidade com o peso e a força de um amigo urso, sem muita lógica, mas com poder suficiente para sufocá-la.

Consulta feita pelo O Dia OnLine aos internautas cariocas, na véspera de ano novo (2007), mostrou que 31,4% dos 3.500 que responderam à enquete não permaneceriam na cidade durante o feriadão, principalmente devido ao fator da violência. Sabendo-se que a orla de Copacabana é conhecida internacionalmente pelo grandioso espetáculo de luzes e som que oferece aos milhares de turistas que lotam suas areias, torna-se desalentador esse índice de fuga dos cariocas.

É fato que, várias vezes durante o ano de 2007, o governador Sérgio Cabral mostrou-se incisivo quanto à sua determinação de seguir adiante neste projeto de engenharia de inclusão social, com o objetivo de pacificar, ordenar, interagir e proporcionar uma real cidadania a esse universo de pessoas que muitos ainda teimam em ignorar: "O Rio de Janeiro tem 6 milhões de habitantes e 1,4 milhão morando em favelas. Estamos em contagem regressiva para as obras. Ocuparemos as favelas com ruas, avenidas, bibliotecas e escolas". Decreto publicado no Diário Oficial do estado já considerou de "utilidade pública" todas as obras do PAC nas favelas.

Comércio bilionário

No final de novembro (2007), o presidente Lula subiu o morro do Pavão-Pavãozinho, na zona sul do Rio, para dar o pontapé inicial das obras do PAC naquela favela. As obras para ampliação do acesso ao local estavam paradas desde 2002 e o presidente garantiu R$ 35 milhões para o projeto e também para a implantação de sistemas de água e esgoto. A legalização dessas moradias também foi um dos pontos assinalados pelo presidente. Essas ações, independentemente de serem entendidas, por alguns, como iniciativas de caráter eleitoreiro ou populista, precisam ganhar o apoio da sociedade e a confiança das comunidades a serem beneficiadas.

O Fundo de Populações das Nações Unidas (Unfpa), em relatório publicado em julho (2007), faz um doloroso prognóstico: em 2030, com a população urbana dobrada, seremos um planeta de favelas. No Brasil, onde 84% da população se concentra em centros urbanos, seria louvável que a grande mídia não descuidasse do tema e continuasse a mirar os seus holofotes no trabalho a ser desenvolvido pela engenharia pública brasileira, a quem caberá, nos próximos anos, repensar, redesenhar e construir as novas configurações das cidades. Segundo o urbanista Sérgio Magalhães, se somássemos as populações das cidades do Rio e de São Paulo que hoje vivem em favelas, já teríamos a 3ª maior cidade do país, com quase 5 milhões de habitantes.

A cidade do Rio de Janeiro tem 752 favelas e estudos apontam que em 300 delas existe um forte tráfico de cocaína. Na Rocinha, a segunda maior favela da América do Sul, com 120 mil habitantes (a primeira é Petare, em Caracas, na Venezuela, com 1 milhão de moradores), o narcotráfico movimenta 10 milhões de reais por semana. Em contrapartida, a região tem o mais alto índice de tuberculose do estado. Já no Complexo do Alemão, onde vivem 80 mil pessoas, o tráfico de armas é um parceiro comercial lucrativo das drogas. Dados de organizações internacionais dão conta de que a venda de armamentos contrabandeados do Paraguai rende 88 milhões de reais, por ano, somente no Rio.

Muitos se utilizam dessas estatísticas de contravenção e criminalidade registradas nas favelas para sustentar a argumentação da impossibilidade de mudar a cultura social do tráfico nessas comunidades, vincada e sedimentada ao longo de mais de três décadas. Mas nunca é demais lembrar que o Brasil tem 7,8 mil quilômetros de fronteiras pouco guarnecidas e é vizinho dos três maiores produtores de cocaína do mundo (Colômbia, Peru e Bolívia) e do maior plantador de maconha do continente (Paraguai). Em termos globais, o narcotráfico internacional movimenta 500 bilhões de dólares anuais, mais que o comércio do petróleo e só perdendo para o tráfico de armas. Logo, demonizar as favelas como incontroláveis redutos de tráfico e negócios ilegais da cidade é ignorar a abrangência e o poderio de um bilionário comércio transnacional, que funciona e age como um governo paralelo, insubmisso às nações civilizadas, e com regras próprias.

Uma bela jornada

A grande mídia, em 2008, tem uma grandiosa tarefa pela frente: acompanhar e cobrar o desdobrar das obras do PAC nas favelas, alistando-se nessa missão de resgate da cidadania de uma grande parcela de nossa sociedade, lado a lado com os arquitetos, engenheiros e operários que estarão engajados nesse trabalho. Revivendo o sonho da construção de Brasília, nos anos 60, quando a engenharia pública nacional mostrou ao mundo a sua capacidade e originalidade ao erguer uma capital moderna e funcional no meio do nada, o PAC das favelas surge, neste século 21, para consolidar os novos rumos da engenharia no Brasil. Transformar as favelas em bairros não é uma idéia nova e alguns melhoramentos já foram realizados pela prefeitura. A inovação do PAC é a onda de conscientização que já perpassa os vários setores da sociedade que vêm respondendo afirmativamente à necessidade das obras a serem realizadas nessas comunidades.

Mas, e depois das obras prontas? Como se daria a conservação das mesmas? O modelo de privatização de nossas estradas é um bom exemplo a ser seguido. Às firmas envolvidas nas obras se cobraria um pedágio social: o de realizar a manutenção, por dez a 15 anos, das obras realizadas. Um motivo a mais para a execução do projeto, em termos de engenharia, primar pela utilização de material funcional e de boa qualidade.

Enfim, estamos diante de uma bela jornada, ainda que trabalhosa e difícil, face aos indicadores sociais de pobreza e violência. Mas, as dificuldades, longe de desanimar, precisam ser encaradas e transpostas com entusiasmo e a certeza de que o melhor caminho é esse e cumpre trilhá-lo. Com o apoio e a atenção da mídia, ainda a voz mais livre e contundente a favor do cidadão brasileiro.