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quarta-feira, 19 de setembro de 2012

O leitor fiel

por Sheila Sacks
Publicado no site "Observatório da Imprensa"
http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed712_o_leitor_fiel
“A leitura diária do jornal é a oração matinal do homem moderno” (G.W.F. Hegel, filósofo do século 19 e redator do Bamberger Zeitung, de 1807 a 1808)
Na obra A Cabala e o seu Simbolismo, o historiador e professor Gershom G. Scholem (1897-1982) observa o caráter conservador e tradicional do crente em relação à autoridade religiosa que o guia. Esse fato se deve, de acordo com Scholem, à educação e à herança antiga que carregam dentro de si. “Ele cresceu dentro do quadro de uma autoridade religiosa reconhecida e, mesmo quando começa a olhar independentemente para as coisas e procurar seu próprio caminho, todo o seu pensar e especialmente sua imaginação continuam permeados de elementos tradicionais”, explica.
Um dos maiores estudiosos contemporâneos das correntes místicas do judaísmo, Scholem procura referendar a sua tese com as seguintes indagações: “Por que um místico cristão sempre tem visões cristãs, e não as de um budista? Por que um budista sempre vê as figuras do seu próprio panteão, e não, por exemplo, Jesus ou Maria? Por que um cabalista, em busca de iluminação, se encontra com o profeta Elias, e não com a figura de um mundo estranho? A resposta é, evidentemente, que a expressão da experiência de um místico é por ele imediatamente transposta para símbolos de seu próprio mundo, mesmo que os objetos destas experiências sejam essencialmente iguais.”
A fidelidade do crente para com a sua religião encontra no mundo secular um paralelo análogo e curioso quando se analisa a relação, muitas vezes paranoica e até fundamentalista, do leitor com o seu jornal. Similar a um líder espiritual, o jornal o informa, orienta e o aconselha sobre temas relevantes, sempre sob uma determinada ótica – a sua visão –, levando o leitor a assimilar uma linguagem e uma experiência de conceitos e ideias que o tornam conservador e até impermeável a outros pontos de vista.
Espaço dos leitores
Ainda que variáveis possam ocorrer, essa constatação pode ser facilmente aferida no espaço que o jornal concede à opinião dos leitores – uma página, em se tratando de O Globo –, cujos comentários e argumentações nos remetem, inevitavelmente, ao pensamento editorial/político do jornal. Isso vem acontecendo com relação ao que ficou conhecido como o “julgamento do mensalão”. A retórica utilizada pela imprensa é reproduzida, muitas vezes inconscientemente, por seus leitores, que se transfiguram em porta-vozes informais dos jornais, justamente nesses raros e valiosos canais abertos para o que se convencionou intitular de opinião pública.
Há pouco mais de um mês (7/8/2012), o Observatório da Imprensa publicou um artigo do professor Venício A. de Lima (“Que 'opinião pública´é essa?") em que o articulista chama a atenção para a postura condenatória de jornalistas e colunistas para com os indiciados do mensalão, sob a alegação de uma suposta “pressão da opinião pública”. No entanto, segundo pesquisa publicada na CartaCapital, citada pelo autor, apenas uma em cada dez pessoas tem conhecimento do julgamento.
A doutrinação subliminar que a imprensa tem infundido a seus leitores ao longo do tempo tem criado a figura do leitor fiel, aquele que crê e segue incondicionalmente o ponto de vista editorial do jornal, mesmo sem ter consciência do fato. Assim como a religião é uma tradição familiar que se perpetua através de gerações, o jornal também se tornou uma tradição familiar que atinge todos que o acompanham. Dessa forma, o espaço dos leitores nos jornais estaria limitado a uma única retórica, a uma opinião direcionada que não se enquadraria na diversidade que o termo “opinião pública” engendra.
Despolitização e desencanto
Em 2010, em um seminário internacional em Lisboa sobre “Mídia, Jornalismo e Democracia”, Thomas Patterson, professor da Universidade Harvard na disciplina “Governo e Imprensa”, surpreendeu a plateia ao afirmar que a mídia norte-americana, apesar da grande quantidade de notícias, não tem contribuído para criar cidadãos informados e engajados no processo democrático. Autor de vários livros sobre a influência da mídia na participação política, Patterson acredita que o jornalismo crítico do jeito que vem sendo praticado enfraquece o interesse das pessoas pela política. “Jornalismo e democracia partilham um destino comum: sem instituições democráticas e sem espírito democrático, os jornalistas ficam reduzidos a propagandistas e entertainers.”
Esse comportamento da mídia já havia sido alvo da reprimenda de Patterson em 1998, em entrevista publicada no Diário de Notícias de Portugal. Na ocasião, o autor do premiado Out of Order (1993), considerado o melhor livro da década sobre comunicação e política pela APSA (The American Political Science Association), foi incisivo: “Há toda uma ideologia de notícias partilhada pelos jornalistas que pode acabar por afastá-los da realidade social. A informação não é um espelho da realidade, é uma visão refratada, moldada pela ideologia do jornalista.” E disparava: “A maioria acha que os jornalistas são demasiados críticos, negativos, desrespeitadores, sensacionalistas e opinativos.”
Visão semelhante à do sociólogo francês Pierre Bourdieu (1939-2002), para quem o mundo jornalístico com seus mecanismos produz e impõe “uma imagem cínica do mundo político, espécie de arena entregue às manobras de ambiciosos sem convicções, guiados pelos interesses ligados à competição que os opõe”. Bourdieu dizia que esse tipo de exposição concorre para produzir um efeito de despolitização e desencanto com a política (Sobre a Televisão, 1997).
Paladino do bem
Com um discurso parecido, o veterano jornalista Lawrence Grossman, que presidiu a rede de rádio e TV americana NBC News de 1984 a 1988, acusa a mídia de “contribuir enormemente para o crescente cinismo do público, para o seu afastamento da política e para a desconfiança em relação ao governo”. Grossman faz uma apreciação sombria do jornalismo, que no seu entender está se tornando “um deserto vasto e inculto”. Autor da obra Eletronic Republic (1995), alguns anos mais tarde escreveu: “O jornalismo atual se concentra quase exclusivamente nos erros do governo e naquilo que ele não deveria fazer em vez de se concentrar nos serviços essenciais que ele fornece” (Caro McChesney, 1999).
Essas considerações foram dirigidas ao pesquisador e professor de Comunicação da Universidade de Illinois, Robert W. McChesney, defensor entusiasta de uma mídia pública, cívica e comunitária, regida por investimentos governamentais, uma proposição considerada por muitos como utópica e fora da realidade. Em seu livro Morte e Vida do Jornalismo Americano (2010), escrito em parceria com John Nichols, esse especialista em estudos dos meios de comunicação de massa reafirma seu ponto de vista alertando que “é inteiramente irreal esperar que a motivação do lucro proporcione algo próximo do nível de jornalismo necessário para uma cidadania informada e para um governo democrático”.
Nas condições atuais, percebe-se que dificilmente o leitor terá a chance de alcançar um grau relevante de independência em suas opiniões, basicamente formadas por crenças construídas a partir de um aforismo que se convencionou rotular de “interesse público”. Hoje as opiniões são crenças compartimentadas e compartilhadas por comunidades de fieis que, tal como nas doutrinas religiosas, colocam seus credos à frente da razão.
O psicólogo americano Michael Shermer, que estuda há três décadas esse fenômeno, acredita que as crenças vêm primeiro e as razões para justificá-las, depois. “Há um mundo verdadeiro lá fora, mas nosso cérebro não possui necessariamente uma correspondência com esse mundo de verdade. Nosso entendimento da realidade depende das crenças que formamos sobre ela”, explica Shermer, autor de Cérebro & crença (Caderno “Prosa” de O Globo, 15/9/12). Enfim, um processo mental coletivo capturado com habilidade pela “república da mídia”, que se utiliza da milenar crença do mal para consubstanciar sua imagem de paladino do bem e da verdade, nas sucessivas cruzadas que promove contra aqueles que são a sua representação dos dragões da maldade.