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domingo, 30 de novembro de 2014

A linguagem perdida ou o mundo infinito que a linguagem não alcança

por Sheila Sacks

“Cada pensamento desloca as partículas do cérebro, pondo-as em movimento e disseminando-as pelo Universo. Cada partícula da matéria existente deve ser um registro de tudo o que aconteceu.- “Principles of Sciences”, de William Stanley Jevons (1835-1882) e Charles Babbage (1791-1871)


O instrumento da linguagem continua aquém dos mistérios da Vida e do Cosmos. No século 19, pensadores históricos buscaram acender nas palavras a luz que poderia iluminar o universo não lógico que ainda nos espanta nessa segunda década do século 21. Percepções múltiplas sobre o Inexplicável e o Infinito estão gravadas em milhões de páginas que desafiam a capacidade humana de compreender e assimilar os fenômenos fundamentais da existência. 

Entretanto, hoje, acelerando um processo selvagem de dispersão mental, restamos reféns de palavras e encadeamentos frívolos e individualistas, ilhados em uma redoma de pensamentos manipulados por uma máquina de informações e sugestões que nos distanciam, cada vez mais, de um aprofundamento e de uma possível redescoberta da essência da linguagem e de sua possível expansão na tradução de pensamentos que versam sobre o incógnito, o invisível e o que não conhecemos. 

No livro “Key to the Hebrew-Egyptian mystery : in the source of measures”, datado de 1875, o pesquisador e estudioso da Cabalá, James Ralston Skinner, afirma estar convencido de que existiu uma linguagem antiga desaparecida, e de que restam numerosos vestígios. “A singularidade dessa linguagem era que podia estar contida dentro de outra, por um processo oculto, não sendo percebida senão com a ajuda de certas instruções; as letras e os signos silábicos possuíam, ao mesmo tempo, os poderes ou as significações dos números, das figuras geométricas, das pinturas ou ideografias, e dos símbolos, cujo objetivo era determinado e especificado por meio de parábolas, sob a forma de narrações completas ou parciais, mas que também podiam ser expostas separadas ou independentemente, e de vários modos, por meio de pinturas, obras de pedra e construções de terra.”

Skinner, de origem americana, destaca que aquela antiga linguagem estava profundamente infiltrada nos textos hebraicos, de tal forma que se empregando os caracteres escritos, cuja pronúncia forma a linguagem definida, podia-se intencionalmente comunicar uma série de ideais muito diferentes das que se expressam com a leitura de signos fonéticos. Para o pesquisador, realmente existiu na história da raça humana uma linguagem primitiva perfeita que por fatores desconhecidos desapareceu ou se perdeu no tempo.

Termos insuficientes

A medium e pensadora russa Helena Petrovna Blavatsky (1831-1891) reclamava da insuficiência de palavras adequadas na linguagem moderna para a abordagem de determinados temas. Dissertando sobre autoconhecimento e consciência, a estudiosa das religiões e autora da “Doutrina Secreta” (1888) diz textualmente: “Tal é a pobreza da linguagem humana que não dispomos de termos para distinguir o conhecimento em que não pensamos ativamente do conhecimento que não podemos reter na memória.” E refletia: “Mais difícil então será encontrar palavras para descrever os fatos metafísicos e abstratos e distinguir-lhes as diferenças.”

Isso porque as pessoas definem as coisas segundo as suas aparências, de acordo com Blavatsky, que exemplificava: “À Consciência Absoluta chamamos ‘Inconsciência’, porque assim nos parece que deva ser, do mesmo modo que denominamos ‘Trevas’ ao Absoluto, porque este parece de todo impenetrável a nossa compreensão finita.” Contudo, apesar das dificuldades de expressão, a escritora fazia ressalvas ao hebraico e ao sânscrito “onde cada letra tem sua significação oculta e sua razão de ser; onde é uma causa e também o efeito de uma causa precedente”. Ela explicava que a combinação das letras nesses alfabetos produzia muitas vezes “efeitos mágicos”.

Ação da palavra

Alef, a primeira letra do alfabeto hebraico
Sobre a mágica das palavras e sua influência na existência das pessoas, o escritor francês Paul Christian (1811-1877) escreveu: “Pronunciar uma palavra é evocar um pensamento e fazê-lo presente; o poder magnético da palavra humana é o começo de todas as manifestações no Mundo Oculto. Pronunciar um nome é não somente definir um Ser (uma Entidade), mas submetê-lo à influência desse nome e condená-lo, por força da emissão da palavra (Verbum), a sofrer a ação de um ou mais poderes ocultos. As coisas são, para cada um de nós, o que a palavra determina quando as nomeamos. A palavra (Verbum) ou a linguagem de cada homem é, sem que disso ele tenha consciência, uma benção ou uma maldição; e é por isso que a nossa atual ignorância acerca das propriedades da matéria nos é tantas vezes fatal. Sim, os nomes (e as palavras), são benéficos ou maléficos: em certo sentido, são nocivos ou salutares, conforme as influências ocultas que a Sabedoria suprema associou a seus elementos, isto é, às letras que compõem e aos números que correspondem a estas letras.” 

O texto acima está contido no livro “Historie de la Magie”, e foi escrito em 1870. Christian que foi educado para ser sacerdote tornou-se jornalista e escritor, dedicando-se a assuntos esotéricos.  



quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Em Roma, uma sinagoga entre catedrais (a história de um atentado)

por Sheila Sacks

“Há mais de 900 igrejas cristãs em Roma, maiores e menores, católicas e protestantes” (‘The Churches of Rome: Major and Minor’, de Stuardt Clarke/2012).

Em 2004, por ocasião dos festejos do centenário do grande templo de Roma, o papa João Paulo II (1920-2005) enviou uma carinhosa mensagem à comunidade judaica romana, a mais antiga da Europa Ocidental, lembrando a presença milenar dos judeus naquela cidade, que remonta ao século 1 antes da Era Comum. Endereçada ao rabino-chefe de Roma, Riccardo Di Segni, o papa destacou “o profundo laço que une a Igreja com a Sinagoga”, lembrando que ambas as religiões “compartilham, em grande parte, das Escrituras Sagradas, da liturgia e de antiquíssimas expressões artísticas.”

No documento, publicado pelo site católico “Zenit”, João Paulo II se dirige aos judeus de Roma como seus “irmãos prediletos” na fé de Abraão, o patriarca, fazendo referência às figuras bíblicas de Isaac, Jacob, Sara, Rebeca, Raquel e Lia. “Veja como é bom, como é agradável os irmãos conviverem juntos – “Hineh ma tov uma na’im shevet achim gam yachad” (Salmo 133), assinala o pontífice em hebraico. Mais adiante, ele acrescenta que “o majestoso Templo Maior, na harmonia de suas linhas arquitetônicas, eleva-se há 100 anos sobre as margens do rio Tiber como testemunho de fé e de louvor ao Onipotente”.

Construída entre 1901 e 1904, a grande Sinagoga de Roma está instalada no antigo gueto judaico, na Via Catalana, ao lado do pitoresco bairro de Trastevere, e foi concebida pelos arquitetos Vicenzo Costa e Osvaldo Armanni. Faz parte do seleto grupo das 25 mais belas sinagogas do mundo, segundo a revista americana “Complex”, especializada em design e estilo.

Terror ataca

A relação entre João Paulo II e a sinagoga de Roma pontuou de forma singular e dramática a história do século 20. Em 1986, o sumo pontífice tomou a iniciativa de atravessar os portões do templo tornando-se o primeiro papa em quase dois mil anos a visitar uma sinagoga e chamar os judeus de “nossos amados irmãos mais velhos”.  Pondo de lado o protocolo, João Paulo II deu um abraço emocionado no então rabino-chefe Elio Toaff (atualmente com 99 anos), falando aos presentes, por várias vezes, em hebraico.  

A emblemática visita do papa funcionou como uma espécie de contraponto à tragédia que se abateu sobre a comunidade judaica de Roma, quatro anos antes, a mais chocante desde a Shoah (a palavra hebraica para o holocausto, significando calamidade), quando 1.259 judeus romanos foram deportados em trens pelas forças nazistas (em 16 de outubro de 1943) para as câmaras de morte de Auschwitz. A essa ferida jamais cicatrizada veio se juntar mais uma, desta vez representada pelo horrendo atentado terrorista que atingiu a sinagoga, em 9 de outubro de 1982, matando um menino de dois anos, Stefano Gay Taché, e deixando mais de três dezenas de feridos, muitos deles com gravidade.

Na ocasião, a imprensa relatou o banho de sangue que marcou aquela manhã de sábado, quando se realizavam as rezas do ”shabat” e se comemorava o término de “Sucot” (a festa das cabanas que lembra as tendas usadas pelos hebreus nos 40 anos que vagaram pelo deserto de Sinai, depois do êxodo do Egito). O “Diário ABC”, da Espanha, publicou na primeira página: “O templo estava repleto de crianças e adolescentes para uma benção especial naquele sábado. Pouco antes do meio-dia, dois homens se acercaram de uma das entradas da sinagoga e renderam o segurança. Eles entraram na sinagoga portando cinco granadas, conseguindo explodir duas. As pessoas começavam a sair naquele momento. Os terroristas sacaram de suas mochilas metralhadoras e iniciaram o tiroteio. Outros dois terroristas se uniram aos primeiros para completar a carnificina. Terminada a operação, abandonaram o lugar em dois automóveis”.

Sem punições



Em 2012, ao se completarem 30 anos da tragédia, o líder da comunidade judaica de Roma, Riccardo Pacifici, manifestou o seu desapontamento ao presidente Giorgio Napolitano, visto que o atentado, transcorrido tanto tempo, não tinha sido esclarecido e nem os culpados punidos. “Por que naquele dia, e somente naquele dia, não havia presença policial em frente à sinagoga?”, perguntou Pacifici em sua missiva ao presidente. 

Semanas antes do atentado, o rabino Toaff tinha protocolado uma solicitação ao Ministério do Interior para que reforçasse a segurança em torno da sinagoga durante os feriados judaicos de Rosh Hashaná (ano novo), Yom Kipur (dia do perdão) e Sucot, que acontecem em sequência, nos meses de setembro e outubro. Mas, o pedido não foi considerado, apesar do clima de antissemitismo reinante no país, estimulado principalmente pela imprensa e políticos que criticavam o governo de Israel pelo conflito com militantes da OLP no sul do Líbano.

A presença e o acolhimento em Roma do líder da OLP, Yasser Arafat (1929-2004), também estimulou os simpatizantes da causa palestina a se sentirem mais à vontade para atacar alvos judaicos, o que já havia ocorrido em junho daquele ano, com sindicalistas arremessando um caixão na frente da sinagoga.  Recebido como chefe de estado pelo então presidente Sandro Pertini (1896-1990), na residência oficial de Quirinal, Arafat teve igualmente um encontro no Vaticano com o papa João Paulo II em 15 de setembro, três dias antes das comemorações do Rosh Hashaná.

Ambiente hostil

No livro “Attentato alla sinagoga”, lançado em 2013, os autores Arturo Marzano, pesquisador do Departamento de História e Civilização do Instituto Universitário Europeu de Florença, e Guri Schwarz, professor assistente do Departamento de História da Universidade da Califórnia (UCLA), buscam os antecedentes políticos, sociais e históricos que estariam na raiz do ataque terrorista ao templo de Roma, concluindo que o conflito israelense-palestino foi o pivô da tragédia. Para os autores, a Guerra dos Seis Dias, em 1967, que resultou na fuga de milhares de palestinos para a Jordânia, Líbano, Síria e outros países fronteiriços, repercutiu negativamente de forma evolutiva contra Israel ao longo de duas décadas, atingindo os judeus da Diáspora.

Marzano e Schwarz também destacam o papel da imprensa italiana de esquerda que, em 1982, censurava sistematicamente as ações das forças de defesa de Israel instaladas no Líbano (cujo objetivo era impedir os ataques contínuos dos grupos da OLP contra o território israelense). O episódio nos campos de refugiados de Sabra e Shatila, em setembro daquele ano, quando cristãos maronitas libaneses mataram centenas de palestinos em represália ao assassinato do presidente eleito do país, Bashir Gemayel, morto em um atentado com carro-bomba que vitimou 26 pessoas, radicalizou ainda mais os discursos contra Israel que ocupava militarmente a área.

“Ecos dessas tensões contaminaram a sociedade civil”, avaliam os pesquisadores. “O maestro Daniel Oren (nascido em Israel e atual diretor do Teatro Municipal Guiseppe Verdi, em Salerno) foi insultado enquanto regia um concerto no Teatro San Carlo, em Nápoles; em Turim, um jovem foi surrado porque usava um colar com a estrela de David; e em 1º de outubro, uma bomba explodiu no escritório da comunidade judaica de Milão”. Em paralelo, um grupo de intelectuais judeus, tendo à frente o escritor e sobrevivente de Auschwitz, Primo Levi (1919-1987) – laureado em 1979 com o mais prestigioso prêmio literário da Itália (Premio Strega) pelo livro “A Chave Estrela” - assina um manifesto a favor da retirada de Israel do Líbano, gerando um profundo mal estar entre a comunidade judaica composta de 35 mil membros, a metade residente em Roma.

Comentando a obra de Marzano e Schwarz para o diário “Il Foglio”, o escritor e jornalista Guilio Meotti classificou o trabalho como uma “viagem sobre a desumanização de Israel” empreendida por jornalistas e intelectuais no período que antecedeu o atentado. No artigo intitulado “Pogrom Italiano” (25.05.2013), Meotti, que é o autor de “A New Shoah” (Um Novo Holocausto), um livro que conta as histórias pessoais de israelenses vítimas do terrorismo na Terra Santa, cita as palavras do psicanalista Antonio Semi, membro da Societá Psicoanalitica Italiana (SPI), estampadas na primeira página do jornal “Il Gazzettino”, de Veneza, logo após o ataque: “Se eu fosse judeu nos dias de hoje, na nossa Europa civilizada, eu teria medo.”

Reações iniciais


Também o renomado arquiteto Bruno Zevi (1918-2000), autor do projeto do pavilhão da Itália na exposição de Montreal em 1967 (Expo 67) - a maior feira mundial do século 20 -, foi a Câmara Municipal de Roma para tornar pública a revolta e a indignação que tomaram de assalto a comunidade judaica. Corajosamente, ele desautorizou a mídia na sua tentativa de se solidarizar com os judeus, usando o subterfúgio de dissociar o judaísmo do antissionismo. “Não vamos aceitar uma distinção maniqueísta entre judeus e israelenses. Nós pertencemos ao povo de Israel que inclui as comunidades espalhadas em todas as partes do mundo, começando com a mais antiga, a de Roma, e aquelas que retornaram à terra de seus antepassados.”

Professor universitário e autor de vários livros sobre arquitetura, Zevi foi um político atuante, eleito deputado para o parlamento de Roma (1987-1992). Precedendo seu discurso, publicado na íntegra pelo diário conservador “Il Tempo”, a juventude judaica lançou um duro manifesto acusando frontalmente a imprensa (inclusive citando ‘Il Corriere della Sera’, o jornal de maior circulação do país), o presidente da Itália, Sandro Pertini (1896-1990), e até João Paulo II, que abriu as portas do Vaticano para receber o líder de um movimento que agrupava terroristas (ao todo o papa se encontrou 12 vezes com Arafat).

O empresário Dario Coen era estudante na época e encabeçou o movimento. O folheto se iniciava ironicamente com a palavra “Grazie” (obrigado), em alusão à sistemática campanha dos principais jornais do país contra o estado de Israel, e a anuência de políticos e personalidades públicas a esse cenário de hostilidade. O manifesto destacava que Pertini e o ex-primeiro ministro Guilio Andreotti (1919-2013) receberam Arafat nas residenciais oficiais com honras de chefe de estado, uma afronta para os judeus italianos. E concluía, de forma peremptória: “Não precisamos de palavras de compaixão.”

Fuga e Impunidade

Mas, a indignação com o atentado sensibilizou toda a Itália e o então representante da OLP no país, Nemer Hammad (atualmente conselheiro político de Mahmoud Abbas, presidente da Autoridade Nacional Palestina - ANP) se apressou em negar qualquer ligação com o ataque terrorista. Porém, as investigações policiais apontaram para a organização terrorista “Junho Negro” comandada por Abu Nidal (1937-2002), uma facção radical da OLP. Os retratos-falados dos terroristas permitiram assegurar que pelo menos um dos atiradores, o palestino Abdel Osama al-Zomar, era conhecido pelas polícias dos países europeus como integrante do movimento Fatah-Conselho Revolucionário (Fatah-CR), de Nidal. Também o depoimento da namorada italiana de al-Zomar reforçou esse envolvimento.

Preso no norte da Grécia, ainda em 1982, quando dirigia um carro repleto de explosivos em direção à Turquia, al-Zomar passou 40 meses na prisão cumprindo pena por esse delito e também por esconder uma arma em sua cela. Em 1988, o governo grego autorizou a deportação do terrorista para a Líbia do ditador Muamar Kadafi (1942-2011), apesar de o governo italiano ter pedido a extradição do terrorista, três anos antes. Condenado à prisão perpétua na Itália, a Grécia quebrou o acordo de entregá-lo à polícia italiana e expulsou al-Zomar para “um país de sua escolha”, segundo as notícias da época. O terrorista, então com 27 anos, desapareceu na Líbia e até os dias atuais seu paradeiro é desconhecido.

Em entrevista ao “Corriere Della Sera”, em outubro de 2011, Gadiel Taché, de 33 anos, irmão do pequeno Stefano, morto no atentado à sinagoga, lamentava o pouco empenho demonstrado todos esses anos pelo governo italiano no sentido de exigir de Kadafi a extradição do terrorista e de outros membros do grupo. Ele, que ficou gravemente ferido no ataque, dizia esperar que com a morte do ditador líbio ocorrida naquele mês, as autoridades italianas intensificassem a petição junto ao novo governo de Trípoli e reconhecessem oficialmente o irmão como uma vítima do terrorismo e “parte da consciência histórica da Itália” (em 9 de maio de 2012, o presidente Giorgio Napolitano incluiu Stefano nessa categoria).

Revelações

Grades e guaritas cercam
a sinagoga de Roma
Quatro anos antes, em 2008, as declarações de um ex-presidente já tinham provocado perplexidade na comunidade judaica porque o político denunciou a existência de um compromisso extra-oficial entre o governo italiano e a OLP, nas décadas de 1970 e 1980, no sentido de preservar o país de ataques terroristas. Em troca, a Itália não interferiria em assuntos palestinos, fechando os olhos para as atividades da organização no país. Na entrevista, publicada pelo diário israelense “Yedioth Ahronoth”, em 03 de outubro de 2008, Francesco Cossiga (1928-2010), que presidiu a Itália de 1985 a 1992, falou ao correspondente Menachem Gantz sobre esse pacto conhecido como “Acordo Moro”, em alusão ao político Aldo Moro (líder do partido democrata cristão, cinco vezes primeiro-ministro e assassinado em 1978), figura central responsável pelo trato.

O “Acordo Moro” também foi reconhecido por Bassam Abu Sharif, assessor particular de Arafat e atual porta-voz de imprensa da OLP, em reportagem do “Corriere della Sera”, em agosto de 2008. Apelidado de “o rosto do terror” pela revista americana “Time”, Sharif era membro da Frente para Libertação da Palestina (FPL) e foi responsável por uma série de sequestros de aviões de passageiros em aeroportos europeus, nos anos 1970. Ele contou que as organizações palestinas operavam livremente em território italiano e por sua vez não atacavam alvos nacionais na Itália e fora do país, desde que não cooperassem com o estado de Israel.

O “acordo”, porém, não abrangia os judeus italianos e nem os alvos judaicos na Itália. Francesco Cossiga, que faleceu dois anos após a entrevista, acreditava que a política de preservar a Itália de ataques terroristas ainda continuava valendo. “A Itália tem um acordo com o Hezbollah”, afirmou o ex-presidente ao jornal, “e a UNIFIL (sigla em inglês para as ‘Forças Interinas das Nações Unidas no Líbano’ que atuam na região) fecha os olhos ao processo de rearmamento do grupo, desde que não sejam realizados ataques contra os seus contingentes”. O Hezbollah é uma organização islâmica extremista que age no Líbano, catalogada como terrorista pelos Estados Unidos e países europeus. Mantém estreita ligação com o Irã e a Síria e prega a eliminação do estado de Israel.

Ecumenismo e memória

Voltando ao papa João Paulo II, em 25 de janeiro de 1983, com a comunidade judaica ainda traumatizada pela tragédia na sinagoga, ocorrida três meses antes, João Paulo II promulga um novo Código Canônico que entre os seus itens mais importantes destaca o esforço que a Igreja deve consagrar ao ecumenismo. Documento especial enviado a Diocese de Roma orientava para que os sermões não contivessem “qualquer forma ou vestígio de antissemitismo”, recomendando também “uma redescoberta das nossas raízes judaicas”.

Anteriormente, João Paulo II já havia se reunido com delegados das conferências episcopais para normatizar as aulas de catolicismo, chamando a atenção para o comportamento a ser adotado. “Seria necessário conseguir que este ensino nos diferentes níveis de formação religiosa, na catequese dada às crianças e adolescentes, apresentasse os judeus e o judaísmo, não somente de maneira honesta e objetiva, sem nenhum preconceito e sem ofender ninguém, mas também, e mais ainda, com uma viva consciência da herança comum a judeus e cristãos” (Roma, 6 de março de 1982).

Quinze anos depois, com 78 anos, o papa faz uma espécie de mea-culpa, em nome da Igreja, publicando o documento intitulado “Nos Lembramos: Uma reflexão sobre a Shoah” (1998). Ele admite que a perseguição do nazismo contra os judeus pode ter sido facilitada por preconceitos antijudaicos presentes nas mentes e nos corações dos cristãos. João Paulo escreve: “No termo deste milênio, a Igreja católica deseja exprimir a sua profunda tristeza pela faltas dos seus filhos e das suas filhas em todas as épocas.” E prossegue: “A inumanidade com que os judeus foram perseguidos e massacrados neste século supera a capacidade de expressão das palavras. E tudo isto lhes foi feito só porque eram judeus.” Também reconhece o preconceito arraigado que se estende pelos séculos. “Em tempos de crise como carestias, guerras e pestes ou de tensões sociais, a minoria judaica foi muitas vezes tomada como bode expiatório, tornando-se assim vítima de violências, saques e até mesmo massacres.”

O documenta ressalta o “dever da memória” e conclama para um “futuro comum” entre judeus e cristãos. “Pedimos que a nossa tristeza pelas tragédias que o povo judaico sofreu no nosso século leve a novas relações com esse povo. Desejamos transformar a consciência dos pecados do passado em firme empenho por um novo futuro, no qual já não haja sentimento antijudaico entre os cristãos, nem sentimento anticristão entre os judeus, mas sim um respeito recíproco compartilhado, como convém àqueles que adoram o único Criador e Senhor e têm um comum pai na fé, Abraão.”

Vale lembrar que João Paulo II também foi vítima de um atentado terrorista na Praça de São Pedro, no Vaticano, em 13 de maio de 1981. O turco Mehmed Ali Agca atirou três vezes contra o sumo pontífice em meio à multidão que estava no local para saudar o primeiro papa polonês da história (teses conspiratórias surgiram ao longo do tempo envolvendo países do bloco soviético descontentes com a posição do papa favorável aos sindicalistas do movimento polonês “Solidariedade”, do líder Lech Walesa).

Sensação de medo

Desde 1984, e após 16 séculos, a Itália se tornou um estado de pluralismo religioso com o acordo entre a Santa Sé e a república italiana que aboliu o privilégio de o catolicismo ser uma “religião de Estado”. Com a instituição da liberdade religiosa, presente na Constituição, italianos e imigrantes de todos os credos ganharam mais segurança para praticarem a sua fé (atualmente a Itália abriga 1,5 milhão de muçulmanos). Entretanto, no caso específico da pequena comunidade judaica, qualquer visitante mais atento pode notar o temor e a insegurança que seus membros ainda sentem em relação à grande sinagoga de Roma.

Foi o que percebi ao me aproximar de uma família no antigo bairro judeu de Roma. A relutância em indicar a localização do templo e os olhares desconfiados dirigidos à sacola que eu portava, não deixavam dúvidas. No prédio, guardado por duas guaritas, o ingresso somente é autorizado após uma minuciosa revista. Enfim, uma sensação de medo que sobrevive à tragédia de 1982, resistindo ao tempo em sua inquietude por uma justiça que, efetivamente, não se concretizou.

Gadiel Taché, que viveu o pesadelo de perder o irmão e sofrer mais de trinta cirurgias, lamenta que um véu de silêncio ambíguo e estranho ainda acoberte o episódio. Anualmente, a comunidade judaica relembra a data fatídica e clama por esclarecimentos e a prisão dos envolvidos. Ao escolher um sábado, o “shabat”, o dia mais santificado da semana (‘Santificar o Shabat’ ou ‘Shamor et Yom HaShabat’, como determina o 4º mandamento), os terroristas premeditaram uma ação visando atingir uma simbologia sagrada e um grande número de fiéis. Porque como preceituava o rabino e teólogo Abraham Heschel (1907-1972), que perdeu a família na “Shoah”, os sábados são as catedrais do povo judaico.

E explicava a razão: “Durante os seis dias da semana, vivemos sob a tirania das coisas do espaço. O sábado nos coloca em sintonia com a santidade do tempo. Neste dia somos chamados a participar no que é eterno no tempo, a nos voltar dos resultados da criação para o mistério da criação, do mundo da criação para a criação do mundo.”

O sábado das orações e das bênçãos que, lamentavelmente, naquela manhã outonal, não ecoaram em toda a sua glória nos céus de Roma.

terça-feira, 2 de setembro de 2014

O jornalista que espionava

Por Sheila Sacks
 “Posso resistir a tudo, exceto à tentação.” (Oscar Wilde, escritor e dramaturgo irlandês do século 19)
Esse artigo foi publicado no Observatório de Imprensa, em 02.09.2014 na edição 814 http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed814_o_jornalista_que_espionava

 Nascido na Alemanha do após guerra, Wilhelm Dietl era um jornalista experiente e respeitado, com vários livros no currículo, quando em 2005 descobriu-se que ele havia sido um agente do Serviço de Inteligência Federal (BDN, na sigla em alemão) por mais de uma década. Especialista em geopolítica do Oriente Médio, autor de reportagens investigativas em zonas de conflito, notadamente em países como Irã, Iraque, Afeganistão, Paquistão, Líbia, Líbano, Israel, Egito e Síria, Dietl contava com espaços preciosos para as sua matérias em importantes veículos de comunicação, como os semanários Stern e Focus. Mas tudo mudou quando seu nome apareceu em um relatório do BDN como sendo o de um espião remunerado de codinome Dali que exerceu a função de informante do órgão no período de 1982 a 1993.

Envolvido no escândalo de espionagem que mobilizou a mídia e a opinião pública alemãs, resultando em uma comissão parlamentar de inquérito, Dietl sempre negou que espionava ou fornecia informações contra os seus colegas de profissão, apesar de admitir que por onze anos foi um agente pago do serviço secreto alemão. Ele revela que seu trabalho consistia em coletar informações e recrutar agentes para o BDN, principalmente na região do Oriente Médio, e por conta disso ele se arriscou e enfrentou situações de perigo.
Em 2007, em uma longa entrevista ao jornalista israelense Yossi Melman, do jornal Haaretz, Dietl disse que foi cooptado para trabalhar no BDN por conta de um trabalho jornalístico que realizava em 1982 sobre o Afeganistão. Depois de um encontro com o porta-voz da agência em um subúrbio de Munique, onde fica a sede do BDN, ele foi convidado a trabalhar para o órgão colhendo informações e elaborando relatórios, mantendo, porém, a sua rotina de jornalista especializado em questões de geopolítica.

Dietl ganhava cerca de mil marcos (em torno R$ 1.500,00) por relatório de dez páginas, além de ter as suas passagens aéreas e as diárias de hotéis pagas a cada missão que realizava, que podia ser em Paris, entrevistando o presidente deposto da Argélia, Ahmed Ben Bella (1918-2012), ou em Damasco, conversando com o ministro de Defesa da Síria, Mustafa Tlass, que exerceu o cargo de 1972 a 2004. O jornalista alemão também revelou que recrutou para o BDN dois agentes de um país árabe fronteiriço a Israel que lhe forneceram uma lista de terroristas da organização extremista Fatah-CR (Conselho Revolucionário do Fatah), comandada por Abu Nidal (1937-2002), responsável por dezenas de atentados, mortes e sequestros em 20 países nas décadas de 1970 e 1980.
Experiência como correspondente

Anos antes de entrar para o serviço secreto, o jornalista alemão já tinha estado no Irã, acompanhando a Revolução Islâmica, e se encontrado com o aiatolá Khomeini. No Líbano, falou com o presidente da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), Yasser Arafat (1929-2004), e com membros da organização fundamentalista Hezbollah. Durante a guerra do Afeganistão contra a ocupação soviética (1979-1989), Dietl posou ao lado do comandante rebelde Gulbuddin Hekmatyar, que se tornou primeiro-ministro do país na década de 1990 e depois se aliou ao movimento fundamentalista islâmico Taliban e à rede terrorista al-Qaida.
Militantes da Irmandade Muçulmana
Essas e outras incursões de Dietl pelo mundo muçulmano em ebulição, focalizadas em primeira mão nas reportagens que traziam os bastidores dos fatos e as palavras dos principais líderes envolvidos – deixando entrever a existência de uma agenda pessoal de contatos e fontes de informação superlativas –, provavelmente foram determinantes para o convite do BDN ao jornalista. Ele afirma que no início hesitou, mas que depois concordou com a proposta, imaginando que estaria servindo ao país.
O trabalho como jornalista funcionou como excelente cobertura, segundo Dietl, facilitando o seu acesso às informações e às pessoas, como no caso do jornalista sírio Louis Fares, amigo pessoal do presidente Hafez al-Assad (1930-2000). O político sírio que governou o país por quase 30 anos, pai do atual presidente Bashar al-Assad, enviou Fares em missões clandestinas à França e Dietl dá a entender que essa amizade e de outras fontes sírias lhe renderam importantes documentos sigilosos, os quais enviava para seus contatos na Alemanha.
No Líbano, Dietl manteve contato com fontes que se relacionavam com militantes do grupo Hezbollah e da Organização para Libertação da Palestina, a OLP. Ele conta que em Beirute ouviu relatos dessas fontes sobre o assassinato de Ali Hassan Salameh, um dos líderes da organização Setembro Negro, levado a termo por uma agente do Mossad, o serviço secreto israelense. Chefe operacional do atentado que matou onze atletas israelenses nas Olimpíadas de Munique, em 1972, Salameh foi morto em 1979, enquanto dirigia em uma rua de Beirute, após uma caçada que durou sete anos. Coube à agente conhecida como “Erica Chambers” acionar por controle remoto a bomba instalada na viatura. Dietl confessa que ficou fascinado pela história dessa agente secreta, inglesa de nascimento, que ingressou no Mossad aos 21 anos, quando estudava na Universidade Hebraica de Jerusalém.
De posse de informações sigilosas obtidas com integrantes da OLP que realizaram investigações sobre os antecedentes do atentado, refazendo os rastros de “Chambers” em endereços na Alemanha e em Genebra, Dietl escreveu em 1993 o livro Die Agentin des Mossad – Operation Roter Prinz (A Agente do Mossad – Operação Príncipe Vermelho, em tradução livre). Mas anos antes esses dados já tinham sido repassados pelo jornalista ao serviço secreto alemão. Em outra operação no Líbano, ainda acobertado pela atividade de jornalista, Dietl conseguiu obter com agentes e fontes do Hezbollah documentos sobre os vários sequestros de diplomatas e outros funcionários ocidentais levados a cabo pelo grupo na década de 1980.

Espiões, inteligência e geopolítica

Durante o período em que foi agente secreto, Dietl amealhou o equivalente a cerca de 600 mil marcos (algo como R$ 1,8 milhão). Quando se desligou do BDN por divergências com o órgão, ele conta que até sentiu alívio, pois admite que estava com os “nervos em frangalhos”. Ele se reunia com terroristas, comandantes militares, representantes de serviços de inteligência e políticos na condição de correspondente, com a incumbência de escrever reportagens sobre os acontecimentos no Oriente Médio. Entretanto, o ofício paralelo de espionar em cidades como Teerã, Amã ou Damasco era desgastante do ponto de vista psicológico, já que Dietl se utilizava do recurso do suborno envolvendo funcionários oficiais para conseguir documentos e material de interesse da agência alemã.
Execuções no Irã
No início de 1982, chegou a ser detido pelas forças de segurança sírias na cidade de Hama, ao norte de Damasco, durante os sangrentos confrontos com o grupo da Irmandade Muçulmana, que se rebelou contra o governo central. Mas conseguiu escapar mostrando a seus interrogadores a gravação da entrevista que teve com o ministro de Informações do país e mentindo acerca de um suposto encontro agendado com o presidente Hafez Assad (que não pode ser checado porque o serviço de telefonia estava interrompido). Esse episódio na Síria e mais as constantes viagens de Dietl ao Oriente Médio em função de pesquisas que realizava sobre as organizações secretas do Islã para o livro Holy War (Guerra Santa), publicado em 1983, também foram decisivas para a sua proximidade com os oficiais do BDN. “Estou orgulhoso do que fiz”, declara Dietl. “Não tenho que pedir desculpas. Eu agi acreditando em valores e ideais; denunciei terroristas perigosos, abortando operações e salvando vidas humanas.”

Falando sobre a sua contratação pelo serviço secreto alemão em 1982, Dietl admite que os tempos mudaram. “Hoje, as organização de espionagem enviam os seus agentes a zonas de conflito sob o disfarce de jornalistas, o que não ocorreu comigo, pois eu era um jornalista de fato”, afirma. Suas memórias sobre esse período podem ser conferidas no livro Deckname Dali: als agente des BND im Nachen Osten (Codinome Dali: Relatórios de um agente do BDN, em tradução livre), lançado em 2007, dois anos após o seu segredo vir à tona. A esse respeito, o ex-correspondente da revista Time David Halevy não se mostra surpreendido com a proximidade de jornalistas com as agências de inteligência. Amigo de longa data de Dietl, Halevy nasceu em Jerusalém e por mais de quinze anos trabalhou na revista americana. Para ele, a fronteira entre o jornalismo e a espionagem é muito turva. “O jornalista pode se achegar das fontes e pagar pelas informações sem levantar suspeitas”, avalia (“Cover Story”, Haaeretz Magazin, 14/8/2007).

Mulheres presas no Egito
Autor do livro investigativo Inside the P.L.O. (Dentro da OLP, em tradução livre), lançado em 1990 e escrito em parceria com o americano Neil C. Livingstone, o israelense explica que o jornalista que cobre assuntos que envolvem agências de espionagem está sempre de alguma forma negociando informações. “Algumas reportagens são melhores que muitos relatórios de inteligência”, enfatiza. Halevy que colheu material para o seu livro em seis agências de inteligência (três do Ocidente e três do Oriente Médio) preservou as identidades das mesmas, apesar de questionado por essa atitude. No livro está a informação citada como oriunda de um serviço secreto árabe sobre os 6 a 8 bilhões de dólares que Arafat controlava sozinho por meio de empresas de fachada e fundos em bancos espalhados pelo mundo, inclusive nos Estados Unidos. Um tema que Dietl domina e volta à carga em 2010 ao publicar Shadow Armies: The Secret Services of the Islamic World (Exércitos da Sombra: Os Serviços Secretos do Mundo Islâmico, em tradução livre), focalizando as atividades de espionagem clandestina do Irã dos aiatolás (dentro e fora do país), Iraque, Egito, Líbia e Síria, assim como as ligações financeiras dessas organizações com os grupos armados Hezbollah e Hamas.

Prisão de Kermanshah (Irã)
É o seu décimo oitavo livro e, como a maioria, versando sobre espiões, agências de inteligência e a geopolítica de guerra do Oriente Médio. Uma experiência que já o havia levado a escrever, em 1997, o livro Operation Eichmann: Pursuit and Capture (Operação Eichmann: Perseguição e Captura), em parceria com o agente do Shin Bet (o serviço se segurança de Israel) Zvi Aharoni (1921-2012). A obra detalha aspectos da localização e captura do oficial nazista Adolf Eichmann na Argentina, em 1960.

Amizade e segredos

No Brasil, o jornalista Claudio Tognolli, diretor-fundador da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), professor da USP e autor de livros polêmicos (Mídia, Máfia e Rock and Roll; 50 anos a mil; Assassinato de reputações, entre outros), é incisivo ao traduzir o envolvimento do jornalismo com o ambiente da inteligência e espionagem. “Todo mundo que cobre inteligência tem algum amigo que trabalhou ou trabalha para CIA ou pra KGB.” Ex-correspondente da Folha de S.Paulo nos Estados Unidos, Tognolli também trabalhou na revista Veja. Em entrevista ao blog “Brasil no mundo”, de Fábio Pereira Ribeiro (Exame.com, em 20.03.2014), o jornalista fala de sua amizade com o delegado paulista Mauro Marcelo de Lima e Silva, formado no FBI, e nomeado por Lula, em 2004, para comandar a Abin (Agência Brasileira de Inteligência).

Por conta dessa amizade, em 2006 ele foi convocado por Mauro para uma missão humanitária no Iraque, em parceria com a CIA, que acabou não se consumando por motivos pessoais (um colega do New York Times o alertou para o fato de que os sunitas o matariam ao verem seus braços e costas tatuados em hebraico). Ainda de acordo com Tognolli, antes de se tornar diretor-geral da Abin Mauro Marcelo era a sua melhor fonte, além de um grande amigo. “Mauro me contava segredos inacreditáveis”, relembra. “Eu sempre os enterrava. Mas repetia a ele: ‘Doutor, não me conta isso porque em jornalismo eu acato a frase do Oscar Wilde: ‘Posso resistir a tudo, exceto à tentação’.”


Atentado ao prédio da Amia, em Buenos Aires
Uma frase que se aplica de alguma forma à maioria das reportagens investigativas que se apoiam em documentos e dados de fontes sigilosas, na maioria das vezes obtidos no interior dos órgãos de governo. Um caminho sinuoso onde a amizade e a confiança mútuas flexibilizam regras e conceitos. Recentemente, O Globo publicou uma reportagem investigativa do jornalista José Casado acerca da conexão islâmica no Cone Sul que prima pelos detalhes das informações. A reportagem reconta os preparativos para os atentados à embaixada de Israel em Buenos Aires e ao prédio da Amia (Associação Mutual Israelita da Argentina), em 1992 e 1994. Casado expõe a fragilidade de atuação dos órgãos governamentais na Tríplice Fronteira e “a relutância dos governos da América do Sul em admitir a possibilidade de conexão regional com a novidade do terrorismo político-religioso em escala global” (“A Conexão Brasil no Extremismo Islâmico”, em 13/07/2014). Uma reportagem extraordinária, de leitura imperdível, melhor que qualquer relatório “confidencial” da CIA, reforçando a sensação de que a fronteira entre o jornalismo e a espionagem é uma questão de opinião.

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Israel e a escolha de Sofia

Por Sheila Sacks


 “Como os terremotos, os terroristas atacam aleatoriamente: quem sobrevive e quem morre depende de contingências que não podem ser merecidas ou evitadas” (“O Mal no Pensamento Moderno”, de Susan Neiman)

O Estado de Israel carrega dívidas memoriais em relação ao povo judeu traduzidas em dois mil anos de desterros trágicos advindos das sucessivas perseguições religiosas ocorridas ao longo do tempo nos quatro cantos do mundo – da Europa, Ásia, África ao continente das Américas - e que culminaram com o horror do Holocausto no início da década de 1940.

Instituída como nação pela ONU, em 1948, desde então a cada embate que o estado israelense é levado a travar com organizações ou governos extremistas instalados em suas fronteiras (que lhe negam o direito de existir e se armam com palavras e equipamentos de guerra para eliminá-lo), observa-se o recrudescimento do antissemitismo que infelizmente ainda sobrevive latente em países dos mais distintos, segundo pesquisas periódicas divulgadas pelos centros judaicos.

Abrigando 190 mil sobreviventes do Holocausto, a maioria com mais de 80 anos, Israel é o primeiro e último refúgio dos judeus de diversas nacionalidades que de alguma forma se sentem ameaçados pela face milenar do preconceito em sua própria terra natal. O estigma da rejeição e a humilhação de se ver atado a um falso e abominável estereótipo muitas vezes impõem a esses judeus o caminho de um exílio não planejado. Um fato a lamentar que infelizmente ainda persiste nesse século 21.

A cada guerra o estado de Israel vive o seu dilema de Sofia, lembrando a obra do escritor americano William Styron, falecido em 2006.  Na história, Sofia é uma jovem mãe, sobrevivente do Holocausto, forçada por um soldado nazista à época da guerra a escolher um de seus dois filhos para ser morto. A outra opção seria a morte de ambas as crianças. Uma escolha perversa que a condena a viver em um doloroso martírio até o fim de seus dias.

Israel como nação tem o dever de proteger a sua população de ataques externos e atentados terroristas, respondendo com firmeza às investidas bélicas. Balancear a “proporção” de sua resposta militar, conforme advogam muitos países e a própria ONU, seria com toda a certeza a opção adotada, se isso fosse possível. Quando o adversário se utiliza de táticas de guerrilha onde as vidas humanas não contam, estocando armamentos letais em creches, escolas, hospitais e centros sociais, em meio às mulheres, crianças e pessoas idosas, a imposição de procedimentos que não ponham em risco a população civil soa como uma locução extemporânea abstraída da realidade. Uma frase de efeito moral direcionada apenas a um lado do conflito com a finalidade de criminalizar as ações de defesa de um exército que combate o terrorismo em suas fronteiras.

Conviver em paz com seus vizinhos é a maior aspiração do estado de Israel, compartilhada com os judeus de todo o mundo. A sociedade israelense lamenta que grande parte de seu orçamento esteja direcionada para a guerra ao invés de ser canalizada para a  educação, ciência, tecnologia e ações sociais. Israel não quer assistir seus jovens serem abatidos em guerras sucessivas e nem criar dificuldades e constrangimentos aos judeus de várias nacionalidades que estão adaptados socialmente aos seus países de origem.

Desafiar a ONU ou o conjunto de nações democráticas não são procedimentos que se inserem na agenda diplomática de Israel. Ao contrário, ser alvo de caretas e puxões de orelha públicos maltrata e ofende profundamente um país em guerra contra o terror, exibindo um aspecto da história que ignora o real cerne da questão: o ódio agudo e a total beligerância alimentados continuamente por grupos extremistas em sua ideologia de intolerância e exclusão contra a nação judaica. É desalentador constatar que os milhões de dólares doados por ONGs internacionais e governos de países árabes ao Hamas são usados a serviço de uma guerra pérfida. 

Israel é um estado acuado e militarizado por força de uma posição geopolítica adversa, já expressa à época de sua fundação pela atitude belicosa de seus vizinhos árabes que logo nos primeiros dias de sua independência se lançaram à batalha para inviabilizar a independência da nova nação que surgia. Grupos como o Hamas, em Gaza, Hezbollah, no Líbano, e Al-Qaeda, na Síria, rondam sinistramente Israel e seus líderes vociferam discursos de aniquilação. A requentada e insana ideia de varrer Israel do mapa, disseminada no boca a boca diário, nas escolas, mesquitas, imprensa, rádio e tevês, permanece como a principal propulsora dos sonhos e ilusões desses extremistas que infelizmente controlam e orientam suas comunidades.


Ainda que se multipliquem as perdas humanas de ambos os lados, as guerras e tréguas que se alternam nessa funesta gangorra têm sido usadas por esses grupos como estratégia de marketing para encurralar o estado de Israel e empurrá-lo para um beco sem saída no cenário internacional. Nesses termos, Israel seria o Golias forte e insensível lutando contra um David fraco e impotente. Uma imagem primária acerca dos conflitos na região que excluem a premeditação dessas guerras (um exemplo é a sofisticada rede de túneis subterrâneos, construída pelo Hamas, abarrotada de explosivos penetrando no território israelense) e, principalmente, a imensa cota de responsabilidade dos agressores para com as suas próprias populações, as mais atingidas e as que mais sofrem com a insensatez dessas lideranças.

Por fim, a insistente tentativa de estabelecer um vínculo comparativo entre as ações israelenses e a crueldade do regime político-ideológico nazista que, entre outras aberrações, conduziu milhões de crianças às câmaras de gás, só pode ser entendida como uma distorção indigna dos fatos históricos, "pois os campos de extermínio não apenas fabricavam cadáveres, mas se destinavam à destruição prévia das almas", explica a pesquisadora Susan Neiman, na sua obra "O Mal no Pensamento Moderno" (2002). Dessa forma, todos os processos de humilhação, horror, e de erradicação da identidade e da vontade humanas aos quais as vítimas eram submetidas tinham como objetivo prioritário a anulação do próprio conceito de humanidade no íntimo das pessoas.

 (veiculado no blog "Coisas Judaicas")
http://www.coisasjudaicas.com/2014/07/israel-e-escolha-de-sofia.html