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domingo, 18 de janeiro de 2015

O primado da rosa


 Como a rosa entre os espinhos... (Cântico dos Cânticos - Shir HaShirim, 2:2)

Por Sheila Sacks
(atualizado em 20.10.2017)
Em 2006, mais de duas décadas e meia após a publicação de “O Nome da Rosa”, que até então acumulava mais de 15 milhões de exemplares vendidos, o italiano Umberto Eco, professor universitário de linguística e autor da façanha, ainda precisava explicar aos jornalistas que o entrevistavam o real sentido e o significado do título de sua obra. Publicado em 1980, quando o autor tinha 48 anos, o livro foi levado às telas em 1986, o que contribuiu para popularizar um enredo policial que discorre sobre estranhas mortes que se sucedem em um monastério medieval que abriga uma antiga biblioteca.  

Dois anos depois da primeira edição, em atenção aos seus leitores mais curiosos, Eco escreveu um pequeno livro de pouca mais de 60 páginas – “Pós-Escrito ao Nome da Rosa” - onde faz considerações sobre o sistema de trabalho que utilizou para o desenvolvimento de seu best-seller. Mas, em relação ao real significado do título, ele manteve o suspense: “Um título, infelizmente, é uma chave interpretativa. Um título deve confundir as ideias, nunca discipliná-las”, afirmou no intuito de encerrar a polêmica.

Ambientado no século 14, o livro inicialmente ganharia o título de “A Abadia do crime”, o que foi descartado, segundo o autor, porque “fixaria a atenção do leitor apenas sobre a intriga policial”. Eco reduz ao acaso a escolha do título, admitindo, contudo, que a ideia de usar o nome da rosa o agradou devido à rica simbologia e a mística religiosa que envolve a flor.

Para embaralhar ainda mais a mente do leitor, o livro de mais de 500 páginas se encerra com uma frase redigida em latim: “Stat rosa pristina nomine, nomina nuda tenemus” (A rosa antiga permanece no nome, nada temos além do nome). Emprestada do monge beneditino Bernard Morliacense, que viveu no século 12, a frase original presente no texto latino “De contemptu mundi” contém o vocábulo “roma”, ao invés de “rosa”, em alusão à antiga capital do império romano. O que dá sentido à frase, pois do histórico poder de Roma, em nossos tempos, só resta o nome. 

 A rosa do “Zohar”

Coincidentemente, em 1980, um mês antes do lançamento de “O nome da Rosa”, que ocorreu em setembro, outro livro é publicado tendo a rosa como título. Escrito pelo rabino e filósofo israelense Adin Even Steinsaltz, 80 anos, a obra de apenas 165 páginas intitulada “A rosa de treze pétalas” traz como tema a teologia e a cosmologia nativas do judaísmo conhecidas como Cabalá (‘receber’, em hebraico).

Steinsaltz abre o livro com o trecho inicial do “Zohar” (‘esplendor’, em hebraico; pronuncia-se zôhar), a obra de referência da Cabalá, que dá nome à rosa e descreve a sua conexão com o povo de Israel. Está escrito: “Quem é a rosa? É Knesset Yisrael, a comunidade de Israel. Pois há uma rosa acima e uma rosa abaixo. Quanto à rosa entre os espinhos, ela tem vermelho e branco, como Knesset Yisrael tem justiça e piedade. Quanto à rosa de treze pétalas, como Knesset Yisrael ela tem treze atributos de compaixão envolvendo-a por todos os lados.”

Continuando a sua descrição da rosa mística, o “Zohar” estabelece: “E há cinco pétalas fortes sobre as quais a rosa é formada, e elas foram chamadas de salvações e agora são conhecidas como os cinco portões. E esta rosa é chamada de cálice da bênção, sobre o qual dizem: Eu beberei do cálice da salvação...” (Salmos – Tehilim, 116:13).

 Simbologia hebraica

Edição do "Zohar" (1558)
 Segundo os sábios de Israel, a rosa original tinha treze pétalas em cima e cinco pétalas mais rígidas na base. As treze pétalas ao redor da rosa corresponderiam aos treze atributos da misericórdia divina revelados ao profeta Moisés (Êxodo – Shemot, 34:6-7) e que constituem a base das orações em Yom Kipur (Dia do Perdão) e nos dias de jejum, quando são recitados. Ao nome divino são associados a compaixão, piedade, verdade, purificação e principalmente o perdão.

Ainda sobre a simbologia hebraica da rosa, o cientista, filósofo e pesquisador Michael Laitman, russo de nascimento e que vive em Israel há mais de 40 anos, observa que treze também são as palavras divinas que como pétalas cercam e protegem Israel. Fundador do Instituto de Educação e Pesquisa da Cabalá - Bnei Baruch e autor de 30 livros sobre o tema, ele explica que os vocábulos estão presentes nas duas frases iniciais do Gênesis (Bereshit), inseridos entre o nome divino citado duas vezes.  As palavras funcionariam como uma preparação para a purificação e correção da comunidade de Israel, preparando-a para receber os treze atributos da misericórdia.

 Em relação às cinco pétalas, Laitman analisa o significado de seu ensinamento: “As cinco folhas rígidas (sépalas) que cercam a rosa simbolizam a salvação” (elas têm a função de guardar a rosa dos espinhos que são entendidos como os nossos desejos egoístas). Ele lembra que a rosa também é comparada ao cálice sagrado: “Assim como o cálice da benção deve se apoiar em cinco dedos e não mais, também a rosa se assenta em cinco folhas rígidas (sépalas) que equivalem aos cinco dedos.” A rosa corresponderia ao cálice mencionado nos Salmos (Eu levantarei o cálice da salvação...).

Manuscritos escondidos

Escrito no século 2 da era comum pelo Rabi Shimon Bar Yochai (Rashbi),  o “Zohar” reúne todo o conhecimento espiritual judaico dos 3 mil anos anteriores, em especial os ensinamento da “Torá” (Pentateuco ou os cinco livros de Moisés). Nascido na Galileia, sob o domínio romano, Rashbi viveu treze anos com o filho Elazar em uma caverna onde escreveu a sua obra. Ele tinha participado da rebelião judaica contra os romanos liderada por Simão bar Kochba (ocorrida entre 132 a 135) e teve que se esconder para não ser executado. Sessenta anos antes o Segundo Templo de Jerusalém tinha sido destruído e os judeus condenados a um exílio que durou perto de dois mil anos.

Rashbi faleceu em 160 da era comum, aos 80 anos, e foi enterrado em Meron, no norte de Israel, perto de Tzfat (ou Safed), a cidade que se tornou o centro cabalístico de Israel. Por mais de mil anos os escritos do “Zohar” permaneceram escondidos em uma caverna sendo descobertos no século 13. Coube ao sábio espanhol Moses de Leon (1238-1305) a tarefa de compilar e publicar o seu conteúdo. Segundo o próprio “Zohar”, os segredos de sua sabedoria seriam revelados a todos, transcorrido o período atribuído para a correção da humanidade. Segundo o Talmud, antes do ano hebraico 6000, com o advento da era messiânica.

Missão e essência

No livro “A Rosa de 13 pétalas”, Steinsaltz chama a atenção para a missão que cada ser humano deve executar no mundo visando à correção da alma, uma tarefa específica que ninguém mais pode cumprir, mesmo que existam pessoas melhores e mais capacitadas para realizá-la. Contudo, somente àquela pessoa está destinada a fazê-la, de uma maneira pessoal e nas circunstâncias que lhe pertencem.

Isso porque o destino e a correção de uma pessoa não estão ligados somente com as coisas que ela própria faz ou cria. As existências anteriores de cada um têm influências consideráveis, visto que a vida é uma continuidade e determinados elementos que parecem não pertencer ao presente podem subir à superfície e será preciso completá-los ou corrigi-los. Cada alma tem uma determinada essência fundamental e para evoluir e se elevar ao nível correto é preciso pôr em ordem a parte que lhe cabe.


Nascido em Jerusalém, Steinsaltz foi aclamado pela revista “Time”, em 1988, como o “estudioso do milênio” por seu trabalho de estudo e divulgação do Talmud (‘estudo, aprendizagem’, em hebraico), a coletânea de explicações rabínicas sobre as leis e tradições do judaísmo. 

Leitura diária

Pelo calendário judaico estamos no ano de 5778 (correspondente a outubro de 2017), aproximando-nos do alvorecer messiânico, e apesar do conteúdo do “Zohar” se manter incompreensível para a maioria, a obra de Rashbi é acessada por milhões de pessoas que se dedicam a sua leitura diária, afirma Laitman que é membro do “World Wisdom Council” (Conselho Mundial da Sabedoria), ligado ao “Clube de Budapeste”, uma organização de pensadores e filósofos de diferentes religiões e tradições.

Mas, assim como o “Zohar”, outros documentos hebraicos foram escondidos em cavernas na Terra Santa e lá permaneceram por centenas de anos. É o caso de “Os Manuscritos do Mar Morto”, documentos com regras e recomendações religiosas escritas por membros da seita judaica dos essênios do século 1 da era comum e descobertas em 1947. Em “O nome da Rosa”, o escritor inspira-se nesses procedimentos milenares para montar a sua história e faz da biblioteca do mosteiro uma espécie de caverna que esconde uma  obra antiga e rara, dada como perdida e condenada pela Igreja.

O livro pivô da questão seria uma continuação da “Poética”, do filosofo grego Aristóteles (384-322 antes da e.c.), que trata da comédia e das virtudes do riso, um tema que a Igreja julgava estar associado à frivolidade e que dificultava a prática da fé.  Aproximando a realidade da ficção, Eco reforça a percepção de que, para determinadas gerações, livros podem ser potencialmente perigosos e, portanto, passíveis de serem destruídos.

 A rosa do paraíso

"Roseto Comunale", em Roma
Historiadores afirmam que a rosa é uma flor de origem oriental, com mais de cinco mil anos. Porém, a partir de descobertas de folhas fósseis de rosas em diversos locais do planeta, cientistas atestam que sua origem passa dos 25 milhões de anos, e é anterior à humanidade. No século 3 da era comum o rabino Joshua ben Levi, descreveu o Gan Eden (jardim do Éden) como uma paisagem de vales, rios e murtas, onde crescem 800 espécies de rosas. A descrição está nos “Midrashim” (derivado do radical hebraico ‘darash’, que significa pesquisar, investigar), manuscritos explicativos dos ensinamentos divinos em forma de parábolas, enigmas e histórias. As narrativas inicialmente orais, tendo como tema os versículos da “Torá”, foram compiladas e redigidas por sábios judeus no ano 500.

Há poucos anos, a referência mais singular (e controversa) a associar as rosas ao judaísmo aconteceu na cidade de Roma, onde a prefeitura criou um jardim municipal de rosas, o “Roseto Comunale”, sobre o cemitério judaico “L’Orto degli Ebrei”, datado do século 17.  A história, revelada em 2014 pelo jornal israelense “Haaeretz”, começou em 1934, quando o governo fascista de Benito Mussolini resolveu construir uma avenida atravessando o cemitério. As autoridades tinham prometido à comunidade judaica remover às lápides, porém o cemitério foi destruído.

Em 1950, dois anos após o término da Segunda Guerra, a municipalidade obteve o acordo dos judeus romanos que sobreviveram à tragédia da “Shoá” (calamidade, em hebraico, ou Holocausto) para que o antigo cemitério fosse transformado em um parque de rosas. Uma pequena placa de pedra no formato das tábuas dos 10 mandamentos e alamedas desenhadas em forma de uma menorá, o candelabro judaico de sete braços, lembram a origem judaica do espaço.

Reunindo mais de mil variedades de rosas de vários países, o “Roseto Comunale”, hoje com 10 mil metros quadrados, é procurado por turistas e apreciadores de flores. Porém, um aviso alerta para o fato de que milhares de restos mortais jazem no subsolo, o que faz com que a maioria dos judeus, por motivos religiosos ou por decisão pessoal, sinta-se impedida de visitar esse paraíso de rosas no coração de Roma.

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O Talmud na visão do rabino Steinsaltz:
                                                                
Em primeiro lugar, uma das características do Talmud é que ele se baseia no diálogo, ele se baseia na troca. Ele é diferente dos outros livros. Ele não diz: “Eu vou lhe contar uma coisa”. Ele diz: “Vamos discutir este assunto.”

O Talmud não é um livro que prega a sanidade, mas ele cria sanidade. A sanidade é uma das coisas mais difíceis de definir. É mais fácil definir a loucura. Mas a sanidade é a capacidade de manter coisas diferentes em certo estado de equilíbrio, mas sem deixá-las imutáveis para sempre.

Quando você é criado lendo esses escritos, ao ver alguma coisa, você se pergunta: “Qual é a pergunta que devo fazer sobre isto?”