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terça-feira, 12 de dezembro de 2017

O Muro de Jerusalém



por Sheila Sacks





Aqui estou eu,
calado e perplexo
diante das pedras
de um muro incomum.
Como aportei,
para que ou por que,
pouco se me dá.
Perguntas não faço.
O fato é um só:
eu cheguei.

Se vim a passeio,
passaporte estrangeiro,
que importância isso faz?
A verdade está aí,
para o que der e vier:
eu estou aqui.

Olho o muro e me vejo em mil.
Sou Moché, sou Yeudá,
sou Bar Kochba, sou Anielewicz.
Sou todos que um dia,
com gana e coragem,
lutaram por mim.

Faço uma prece,
sem mesmo saber rezar.
Quero a Torá no meu coração
(antes tarde do que nunca).
Nada mais tem importância,
a não ser estar aqui, de pé,
diante desse muro incomum.

Quero tudo que tenho direito:
a kipá  na cabeça,
o talit sobre os ombros,
as lágrimas molhando o rosto.
Quero a terra, o céu e a alma infinita,
toda a história passada a limpo.
Quero mergulhar de cabeça,
quero ser meu povo!

Tanto tempo vaguei,
preso a tramas,
manhas e artimanhas
de um mundo comum.
Sou o filho que volta,
sem nunca ter passado da esquina.
Indeciso, arrogante,
produto bem acabado
da cultura pagã.
Sou aquele que chamam de jovem,
filho dileto da mixórdia ocidental.

Porém,
sabe-se lá por que cargas d’água,
aqui estou eu,
calado e perplexo,
diante desse muro de pedra.
Cheguei despreparado,
curioso turista,
sem âncora ou amarras,
cidadão do mundo!

Que tolo eu fui.
Aqui, frente a esse muro incomum,
a mentira se desfaz,
perde a pose e a graça.
Diante do muro que resta
eu choro o tempo de engano e espera.
Tudo o que eu não fui
por descaso e preguiça
na hora devida.

Mas agora,
de cara  para esse muro de pedra,
exijo a lei e o feito.
Da Torá o mais ínfimo preceito.
Quero o início, o esplendor e a febre,
também a liberdade e a voz
dos nossos rabis e profetas.

Quero cumprir a promessa,
vencer o deserto,
o vento e a fera.
Frente a frente,
posição de sentido,
a profecia vive na terra prometida!

Frente ao muro,
coração aos pulos,
digo, grito, repito e repiso:
quero mergulhar de cabeça,
quero me descobrir!




sexta-feira, 24 de novembro de 2017

A linguagem perdida

por Sheila Sacks

“Cada pensamento desloca as partículas do cérebro, pondo-as em movimento e disseminando-as pelo Universo. Cada partícula da matéria existente deve ser um registro de tudo o que aconteceu.” “Principles of Sciences”, de William Stanley Jevons (1835-1882) e Charles Babbage (1791-1871)


O instrumento da linguagem continua aquém dos mistérios da Vida e do Cosmos. No século 19, pensadores históricos buscaram acender nas palavras a luz que poderia iluminar o universo não-lógico que ainda nos espanta nessa segunda década do século 21. Percepções múltiplas sobre o Inexplicável e o Infinito estão gravadas em milhões de páginas que desafiam a capacidade humana de compreender e assimilar os fenômenos fundamentais da existência. É o mundo infinito que a linguagem não alcança

Entretanto, hoje, acelerando um processo selvagem de dispersão mental, restamos reféns de palavras e encadeamentos frívolos e individualistas, ilhados em uma redoma de pensamentos manipulados por uma máquina de informações e sugestões que nos distanciam, cada vez mais, de um aprofundamento e de uma possível redescoberta da essência da linguagem e de sua possível expansão na tradução de pensamentos que versam sobre o incógnito, o invisível e o que não conhecemos.

Palavras ocultas

No livro “Key to the Hebrew-Egyptian mystery: in the source of measures”, publicado em 1875, o pesquisador maçom e estudioso da Cabalá, James Ralston Skinner (1830 – 1893) afirma estar convencido de que existiu uma linguagem antiga desaparecida, e de que restam numerosos vestígios. “A singularidade dessa linguagem era que podia estar contida dentro de outra, por um processo oculto, não sendo percebida senão com a ajuda de certas instruções.”

Skinner, que nasceu nos EUA, observa que “as letras e os signos silábicos possuíam, ao mesmo tempo, os poderes ou as significações dos números, das figuras geométricas, das pinturas ou ideografias, e dos símbolos, cujo objetivo era determinado e especificado por meio de parábolas, sob a forma de narrações completas ou parciais, mas que também podiam ser expostas separadas ou independentemente, e de vários modos, por meio de pinturas, obras de pedra e construções de terra”.

Destaca, ainda, que aquela antiga linguagem estava profundamente infiltrada nos textos hebraicos, de tal forma que se empregando os caracteres escritos, cuja pronúncia forma a linguagem definida, podia-se intencionalmente comunicar uma série de ideais muito diferentes das que se expressam com a leitura de signos fonéticos. Para o pesquisador, realmente existiu na história da raça humana uma linguagem primitiva perfeita que por fatores desconhecidos desapareceu ou se perdeu no tempo.

Palavras insuficientes

Por sua vez, a medium e pensadora russa Helena Petrovna (1831-1891), principal figura da teosofia moderna, reclamava da insuficiência de palavras adequadas na linguagem moderna para a abordagem de determinados temas. Dissertando sobre autoconhecimento e consciência, a estudiosa das religiões e autora da “Doutrina Secreta” (1888) diz textualmente: “Tal é a pobreza da linguagem humana que não dispomos de termos para distinguir o conhecimento em que não pensamos ativamente do conhecimento que não podemos reter na memória.” E reflete: “Mais difícil então será encontrar palavras para descrever os fatos metafísicos e abstratos e distinguir-lhes as diferenças.”

Isso porque as pessoas definem as coisas de acordo com as suas aparências, ponderava Blavatsky. “À Consciência Absoluta chamamos ‘Inconsciência’, porque assim nos parece que deva ser, do mesmo modo que denominamos ‘Trevas’ ao Absoluto, porque este parece de todo impenetrável a nossa compreensão finita.” Contudo, apesar das dificuldades de expressão, a escritora fazia ressalvas ao hebraico e ao sânscrito “onde cada letra tem sua significação oculta e sua razão de ser; onde é uma causa e também o efeito de uma causa precedente”. Ela sugere que a combinação das letras desses alfabetos produzia muitas vezes “efeitos mágicos”. 

Ação da palavra

Alef, a primeira letra do alfabeto hebraico
Ainda sobre a mágica das palavras e sua influência na existência das pessoas, o escritor francês Jean-Baptiste Pitois (1811-1877) escreve: “Pronunciar uma palavra é evocar um pensamento e fazê-lo presente; o poder magnético da palavra humana é o começo de todas as manifestações no Mundo Oculto. Pronunciar um nome é não somente definir um Ser (uma Entidade), mas submetê-lo à influência desse nome e condená-lo, por força da emissão da palavra (Verbum), a sofrer a ação de um ou mais poderes ocultos.”

E continua: “As coisas são, para cada um de nós, o que a palavra determina quando as nomeamos. A palavra (Verbum) ou a linguagem de cada homem é, sem que disso ele tenha consciência, uma benção ou uma maldição; e é por isso que a nossa atual ignorância acerca das propriedades da matéria nos é tantas vezes fatal. Sim, os nomes (e as palavras) são benéficos ou maléficos: em certo sentido são nocivos ou salutares, conforme as influências ocultas que a Sabedoria suprema associou a seus elementos, isto é, às letras que compõem e aos números que correspondem a estas letras.” 

O texto acima contido no livro “Historie de la Magie, du monde Surnaturel et de la fatalité a travers les Temps et les Peuples ”, foi escrito em 1870. Jean-Baptiste, que também assinava como Paul Christian, foi educado para ser sacerdote, mas optou por se tornou jornalista e escritor, dedicando-se a assuntos esotéricos.

Poder da Palavra

Nessa mesma linha de pensamento, uma obra anterior, datada de 1859, assinada pelo também francês Eliphas Levi (1810-1875), nascido Alphonse Louis Constant, já invocava a existência de um alfabeto oculto e sagrado, composto de ideias absolutas ligadas a signos e números e que realiza, por suas combinações, as matemáticas do pensamento.

Na obra “A Chave dos Grandes Mistérios”, Levi afirma que os hebreus, os egípcios e depois os pitagóricos tinham conhecimento desse alfabeto único. Teólogo e ex-sacerdote católico, Levi se aprofundou na filosofia da Cabalá e no seu principal livro dogmático, o “Zohar”, para formar a base de suas ideias. Segundo ele, proferir um nome seria criar ou chamar um ser. No nome estaria contida a doutrina verbal ou espiritual do próprio ser. “A palavra age sobre as almas e as almas reagem sobre os corpos; pode-se, portanto, assustar, consolar, fazer adoecer, curar, matar e ressuscitar por palavras”, assegura.

Acreditando na força monumental das palavras, Levi também faz um alerta aos leitores: “As palavras mais perigosas são as palavras vãs e proferidas levianamente, porque são abortos voluntários do pensamento. Uma palavra inútil é um crime contra o espírito de inteligência. É um infanticídio intelectual.” Autor de uma dúzia de livros e considerado por seus pares o maior mestre do renascimento mágico do século 19, Levi criou uma série de axiomas ao abordar, em um capítulo próprio, o que designou de “o poder da palavra”. Ele associa todo o esplendor e a força da palavra à verdade e à justiça ao proclamar que “toda palavra de verdade é o começo de um ato de justiça”.

 Mas, para a autora da “Doutrina Secreta”, obra fundamental para o estudo da Teosofia, “a palavra articulada tem um poder que os sábios modernos não só desconhecem, mas nem sequer suspeitam, e por isso neles não acreditam”.  Blavatsky reforça a tese de que “parece ter havido uma linguagem e um sistema de ciência transmitido à primeira humanidade por homens de uma raça mais adiantada, que poderia aparecer como divina aos olhos daquela humanidade infantil”. Um conhecimento primordial assentado em uma teologia ancestral - de símbolos, mitos e signos -  transmitido ao longo dos tempos por uma linhagem de iniciados de variadas crenças e culturas. Teoria que de certa forma se harmoniza com o pensamento do filósofo grego Plotino (204-270 da era comum), autor de “Enéadas”, quando este atesta que “tudo é símbolo, e sábio é quem lê em tudo”.

Nota: No século 20, o filósofo alemão Walter Benjamim (1892-1940) também foi um estudioso da magia da linguagem. Em seu ensaio “Sobre a Linguagem em Geral e sobre a Linguagem Humana”, ele desenvolveu a sua teoria de que a linguagem humana das palavras pode ser compreendida enquanto “tradução” da “muda linguagem da natureza”. É dele a frase: “Ler o que nunca foi escrito."

Texto atualizado.


quinta-feira, 2 de novembro de 2017

AK-47: os 70 anos de um ícone sinistro

Por Sheila Sacks

Publicado no "Correio do Brasil"


No livro “Gomorra”, sobre a máfia napolitana, o jornalista italiano Roberto Saviano reserva um capítulo de 31 páginas para dissertar sobre o fuzil russo Avtomat Kalashnikova, mais conhecido como AK-47. Diz que a arma matou mais do que a bomba atômica de Hiroshima e Nagasaki, do que o vírus HIV, mais do que todos os atentados terroristas e todos os terremotos. Assinala que dezenas de países usaram o fuzil em guerras civis na Argélia, Angola, Bósnia, Burundi, Camboja, Chechênia, Colômbia, Congo, Haiti, Caxemira, Moçambique, Ruanda, Serra Leoa, Somália, Sri Lanka, Sudão e Uganda.

Saviano lembra os dois presidentes que morreram sob o fogo do Kalashnikov: o chileno Salvador Allende, em 11 de setembro de 1973, no palácio presidencial de “La Moneda”, em Santiago, no golpe militar que instaurou o regime ditatorial do general Augusto Pinochet; e o egípcio Anwar Sadat, em 6 de outubro de 1981, no Cairo, durante uma parada militar, três anos depois de ter assinado dois importantes acordos de paz com Israel, em Camp David. Mortes que se somam a de outros políticos, como a do general italiano Dalla Chiesa, que foi prefeito de Palermo, assassinado em 1982, e a do ditador comunista da Romênia, Nicolae Ceausescu, fuzilado em 1989. “Mortes de excelência” que segundo Saviano garantiram “uma verdadeira publicidade histórica” ao AK-47.

Concebido pelo general Mikhail Kalashnikov, que morreu em 2013, aos 94 anos, e incorporado ao exército soviético em 1947, o AK-47 é o fuzil mais popular da terra e estima-se que 250 mil pessoas são mortas anualmente baleadas pela arma. Para comemorar os 70 anos de sua invenção, foi inaugurada em uma praça de Moscou, em 19 de setembro, a estátua de Kalashnikov empunhando o célebre fuzil que, há décadas, é um dos maiores sucessos russos de exportação.

Símbolo do liberalismo

Com mais de 100 milhões de exemplares espalhados pelo mundo, o AK-47 está na bandeira de Moçambique e na bandeira do grupo fundamentalista islâmico xiita Hezbollah; nos brasões do Timor Leste e do Zimbábue; em centenas de emblemas de grupos políticos e nos vídeos de Osama Bin Laden. “É um símbolo do liberalismo, um ícone absoluto”, abaliza o autor. E explica: “A invenção desta arma permitiu a todos os grupos de poder e de micropoder ter um instrumento militar. Ninguém, depois da AK-47 pode dizer que foi vencido porque não tinha acesso a armas.”

Se na África Ocidental, o fuzil russo pode custar 50 dólares, no Iêmen é possível encontrar um AK-47 usado de segunda e terceira mãos por 6 dólares. É o que afirma Saviano em seu livro. “O kalashnikov permite que todos se tornem soldados, todos, até crianças esquálidas, e transformou em generais das Forças Armadas pessoas que não conseguiriam guiar um rebanho de ovelhas”, ironiza.

O jornalista revela que as drogas sustentam as compras dos AK-47 por grupos armados. Sejam de guerrilheiros, terroristas, paramilitares ou traficantes. “Coca em troca de armas”, enfatiza. Destaca o exemplo do ETA, o grupo separatista basco considerado terrorista pela União Europeia, que enviava cocaína através de seus militantes para receber, em troca, armas da Camorra, a máfia napolitana. Não somente kalashnikov, mas explosivos e lança-mísseis. Conhecido pelo seu histórico de quatro décadas de violência e mortes, resultando em mais de 800 vítimas fatais, o ETA obtinha a cocaína através de seus contatos com grupos guerrilheiros colombianos.

Queda do comunismo ajudou

Com a queda da “cortina de ferro” – expressão usada por Winston Churchill, em 1946, para definir as áreas na Europa sob o domínio da União Soviética – e o fim da chamada “Guerra Fria”, países como Romênia, Polônia e a ex-Iugoslávia ficaram com os seus arsenais abarrotados de armas russas e precisando se reestruturar. O desmantelamento da União Soviética em 1991, precedido pela queda do Muro de Berlim, em 1989, criou um novo cenário político-econômico na Europa e abriu as fronteiras para o mercado ilícito das armas, dirigido principalmente para grupos políticos armados da África, América Latina e do próprio Balcãs, como a Bósnia e a Sérvia.

De acordo com Saviano, a máfia napolitana pagava informalmente a dirigentes comunistas em decadência a manutenção desses depósitos de armas estocadas nos próprios países de origem. Dependendo da conveniência, essas armas eram retiradas e levadas para a Itália para serem negociadas. “Os fuzis vinham empilhados em caminhões militares que ostentavam o símbolo da OTAN ( Organização do Tratado do Atlântico Norte). Eram grandes carretas roubadas das garagens americanas da base da OTAN, em Nápoles, que graças àquela inscrição, podiam rodar tranquilamente pela Itália.”

General Kalashnikov e o fuzil AK-47
Antes, na década de 1980, durante o conflito entre a Argentina e a Inglaterra na Ilha das Malvinas, no Atlântico Sul, a Camorra também entrou no circuito para a venda informal de armas para a defesa argentina. O jornalista afirma que devido ao isolamento econômico do país à época, “ninguém teria lhe vendido oficialmente”. A chamada Guerra das Malvinas durou dois meses e foi um fiasco para a máfia. “Poucos tiros, poucos mortos, pouco consumo.” Ele conta que no mesmo dia que foi decretado o fim do conflito, o serviço secreto inglês interceptou um telefonema intercontinental entre a Argentina e uma localidade em Nápoles. “Aqui a guerra acabou”, falavam da Argentina. “Não se preocupe, haverá outras...”, responderam do outro lado do Atlântico.

Saviano é categórico ao ressaltar o poder de fogo dos clãs da região da Campânia, no sul da Itália, e de sua capital Nápoles e arredores, nas décadas de 1980 e 1990: “As guerras, da América do Sul aos Bálcãs, são feitas com as garras das famílias da Campânia.” Em Nápoles, a Camorra já fez 3.600 mortos nos últimos 30 anos.

Fuzis com a marginalidade

No Brasil, em junho, a polícia civil carioca descobriu no terminal de cargas do Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro uma grande leva de armamentos escondidos em aquecedores de piscinas dentro de containers vindos de Miami. Foram apreendidos 45 fuzis AK-47 que iriam abastecer os traficantes nas favelas, no valor de R$ 1,6 milhão. Na ocasião a secretaria de Segurança informou que desde o início de 2017, 250 fuzis já tinham sido retirados das mãos de bandidos. “No Rio de Janeiro, traficante só tira onda de macho por conta disso, de ter o fuzil. A hora que tiver uma pistola, ele vai dar meia volta”, comentou o titular da Segurança, Roberto Sá, repetindo com outras palavras as observações de Saviano acerca da portabilidade do AK-47.

Pelas contas da polícia do Rio de Janeiro, cada fuzil vendido aos traficantes no mercado negro tem um custo de 20 mil reais (em torno de 6,6 mil dólares). Saviano escreve em “Gomorra” que o valor de um AK-47 está diretamente ligado à violação dos direitos humanos. Quanto mais barato o fuzil, pior são as condições de civilidade e cidadania.

Preocupado com a disseminação dessas armas de alta letalidade, contrabandeadas principalmente do Paraguai e da Bolívia, o governo brasileiro sancionou uma lei, em 26 de outubro, que torna crime hediondo, com prisão imediata e sem direito à fiança, o porte ilegal de fuzis e outros armamentos restritos às áreas militares. Somente no estado do Rio de Janeiro, do início do ano até agosto foram apreendidos 347 fuzis, 149 a mais do que em 2016.

Vivendo recluso
                
 Desde a publicação de “Gomorra”, em 2006, Roberto Saviano vive sob escolta policial, devido a ameaças de morte da Camorra. Em sua penúltima obra, “Zero Zero Zero” (2013), que desvenda as rotas e o tráfico de cocaína no mundo, ele registra uma dedicatória especial, logo na primeira página: “Dedico este livro a todos os carebinieri da minha escolta. Às 38 mil horas vividas juntos. E àquelas que ainda viveremos. Onde quer que seja.”

Onze anos depois do seu livro de estreia – que foi transportado para as telas de cinema e depois transformado em série de TV - Saviano passa a maior parte de seu tempo nos Estados Unidos, recluso, ainda que publicando nos meios de comunicação e escrevendo livros, como o recente romance “La Paranza dei Bambini” (O bando dos meninos), de 2016, sobre a deliquência juvenil em Nápoles. Lamenta que “Gomorra”, publicado quando tinha 26 anos, tenha afetado drasticamente a vida de sua família, que teve de sair de Nápoles. “Minha mãe sofreu um infarto e me senti culpado. Vim correndo dos EUA e, em parte, foi porque me senti como se lhe tivesse dado o golpe no coração (...) E meu irmão, a quem amo demais, o mesmo. Ele me diz que está comigo, mas sei que está cansado de aguentar tanto.”

As confissões foram feitas ao jornalista Daniel Verdú, do “El Pais” (29.08.2017), em um parque na cidade de Bolonha, sob os olhares atentos de cinco carabiniere. Apesar do enorme sucesso internacional – “Gomora” vendeu 10 milhões de exemplares em 40 idiomas - Saviano admite que hoje não teria escrito o livro da mesma maneira. Jurado de morte pela Camorra, ele tem pesadelos e passa por períodos de depressão. “Eu os desafiei, estava convencido de ser invencível.” Mas, em “La Paranza dei Bambini”, Saviano volta ao tema da máfia napolitana, focando em um grupo de adolescentes da Camorra, em Nápoles, que circulava pelas ruas e bairros em motos, atirando com seus fuzis AK-47, amedrontando e controlando seus moradores. Um enredo que desagradou à população e aos empresários da cidade que acusam o jornalista de criminalizar Nápoles e espalhar para o mundo uma imagem negativa do lugar.

Roberto Saviano
Porém, o romance se baseia em fatos reais, a partir de uma investigação desenvolvida pelos promotores antimafia Henry Woodstock e Francesco De Falco e que culminou, em 2015, com a prisão de dezenas de pessoas. Assim sendo, mesmo sob protestos e ameaças, Saviano não tem como excluir o AK-47 de sua literatura. O que lembra uma situação semelhante tendo o Rio de Janeiro como cenário. Desta vez atingindo o premiado cineasta José Padilha. Seus filmes “Tropa de Elite” (2007) e “Tropa de Elite 2 – Agora o inimigo é outro” (2010) que tratam das relações promíscuas entre policiais, traficantes e políticos, e onde não faltam AK-47, o levaram a sair do Brasil, em 2015, depois de se sentir ameaçado. Atualmente, ele vive com a família em Los Angeles e escreve periodicamente para um jornal carioca.

Arma de atentados e guerrilha

O AK-47 também atraiu a atenção de dois jornalistas americanos que se debruçaram sobre o tema: Larry Kahaner, que publicou em 2006 o livro “AK-47, a Arma Que Transformou a Guerra” (na edição em português), e CJ Chivers, ex-correspondente de guerra. Seu livro “The Gun: The AK-47 and the Evolution of War” é de 2010.

Escrevendo para o jornal “The New York Times”, Chivers lembra que o AK-47 é pivô de crimes espetaculares que chamam a atenção do mundo. “A lista remonta a décadas: a morte dos atletas israelenses nos Jogos Olímpicos de Munique, em 1972; a tomada de uma escola em Beslan, Rússia, em 2004; os ataques em Mumbai, Índia, em 2008; o ataque a um shopping center em Nairóbi”, destaca. Ele afirma que a disseminação do fuzil mudou a guerra moderna. “À medida que os governos comunistas repassavam os kalashnikovs para aliados e terceiros, os rifles assumiram um papel inesperado: niveladores de campo de batalha.”

Entre os fatos históricos nos quais o AK-47 teve papel preponderante estão a Guerra do Vietnã, com os guerrilheiros vietcongues utilizando a arma na selva contra os americanos. “Guerrilheiros armados com kalashnikovs lutavam de igual para igual contra soldados de infantaria de uma superpotência”, assinala o jornalista. Por sua vez, nos anos 1980, forças americanas e paquistanesas treinavam combatentes islâmicos a usar o AK-47 na guerra para expulsar as forças soviéticas do Afeganistão.

No campo do terrorismo moderno, coube ao AK-47 inaugurar “a era do terrorismo kalashnikov”. Chievers cita como exemplo o atentado à Vila Olímpica de Munique onde estava a equipe israelense, assistido pelo mundo, ao vivo, pela TV. Alerta que os governos têm feito pouco para deter a proliferação desse tipo de arma, que escapou do controle das autoridades constituídas. “O kalasnikov deixou de ser uma ferramenta do Estado ou da ideologia comunista. Criado para fortalecer estados autoritários, o AK-47 ganhou credibilidade fora da lei, se transformando em símbolo de revolta, contragolpe, crime e jihad”, conclui.

terça-feira, 24 de outubro de 2017

O primado da rosa (atualizado)


 Como a rosa entre os espinhos... (Cântico dos Cânticos - Shir HaShirim, 2:2)

Por Sheila Sacks
publicado originalmente em 18.01.2015
Em 2006, mais de duas décadas e meia após a publicação de “O Nome da Rosa”, que até então acumulava mais de 15 milhões de exemplares vendidos, o italiano Umberto Eco, professor universitário de linguística e autor da façanha, ainda precisava explicar aos jornalistas que o entrevistavam o real sentido e o significado do título de sua obra. Publicado em 1980, quando o autor tinha 48 anos, o livro foi levado às telas em 1986, o que contribuiu para popularizar um enredo policial que discorre sobre estranhas mortes que se sucedem em um monastério medieval que abriga uma antiga biblioteca.  

Dois anos depois da primeira edição, em atenção aos seus leitores mais curiosos, Eco escreveu um pequeno livro de pouca mais de 60 páginas – “Pós-Escrito ao Nome da Rosa” - onde faz considerações sobre o sistema de trabalho que utilizou para o desenvolvimento de seu best-seller. Mas, em relação ao real significado do título, ele manteve o suspense: “Um título, infelizmente, é uma chave interpretativa. Um título deve confundir as ideias, nunca discipliná-las”, afirmou no intuito de encerrar a polêmica.

Ambientado no século 14, o livro inicialmente ganharia o título de “A Abadia do crime”, o que foi descartado, segundo o autor, porque “fixaria a atenção do leitor apenas sobre a intriga policial”. Eco reduz ao acaso a escolha do título, admitindo, contudo, que a ideia de usar o nome da rosa o agradou devido à rica simbologia e a mística religiosa que envolve a flor.

Para embaralhar ainda mais a mente do leitor, o livro de mais de 500 páginas se encerra com uma frase redigida em latim: “Stat rosa pristina nomine, nomina nuda tenemus” (A rosa antiga permanece no nome, nada temos além do nome). Emprestada do monge beneditino Bernard Morliacense, que viveu no século 12, a frase original presente no texto latino “De contemptu mundi” contém o vocábulo “roma”, ao invés de “rosa”, em alusão à antiga capital do império romano. O que dá sentido à frase, pois do histórico poder de Roma, em nossos tempos, só resta o nome. 

 A rosa do “Zohar”

Coincidentemente, em 1980, um mês antes do lançamento de “O nome da Rosa”, que ocorreu em setembro, outro livro é publicado tendo a rosa como título. Escrito pelo rabino e filósofo israelense Adin Even Steinsaltz, 80 anos, a obra de apenas 165 páginas intitulada “A rosa de treze pétalas” traz como tema a teologia e a cosmologia nativas do judaísmo conhecidas como Cabalá (‘receber’, em hebraico).

Steinsaltz abre o livro com o trecho inicial do “Zohar” (‘esplendor’, em hebraico; pronuncia-se zôhar), a obra de referência da Cabalá, que dá nome à rosa e descreve a sua conexão com o povo de Israel. Está escrito: “Quem é a rosa? É Knesset Yisrael, a comunidade de Israel. Pois há uma rosa acima e uma rosa abaixo. Quanto à rosa entre os espinhos, ela tem vermelho e branco, como Knesset Yisrael tem justiça e piedade. Quanto à rosa de treze pétalas, como Knesset Yisrael ela tem treze atributos de compaixão envolvendo-a por todos os lados.”

Continuando a sua descrição da rosa mística, o “Zohar” estabelece: “E há cinco pétalas fortes sobre as quais a rosa é formada, e elas foram chamadas de salvações e agora são conhecidas como os cinco portões. E esta rosa é chamada de cálice da bênção, sobre o qual dizem: Eu beberei do cálice da salvação...” (Salmos – Tehilim, 116:13).

 Simbologia hebraica

Edição do "Zohar" (1558)
 Segundo os sábios de Israel, a rosa original tinha treze pétalas em cima e cinco pétalas mais rígidas na base. As treze pétalas ao redor da rosa corresponderiam aos treze atributos da misericórdia divina revelados ao profeta Moisés (Êxodo – Shemot, 34:6-7) e que constituem a base das orações em Yom Kipur (Dia do Perdão) e nos dias de jejum, quando são recitados. Ao nome divino são associados a compaixão, piedade, verdade, purificação e principalmente o perdão.

Ainda sobre a simbologia hebraica da rosa, o cientista, filósofo e pesquisador Michael Laitman, russo de nascimento e que vive em Israel há mais de 40 anos, observa que treze também são as palavras divinas que como pétalas cercam e protegem Israel. Fundador do Instituto de Educação e Pesquisa da Cabalá - Bnei Baruch e autor de 30 livros sobre o tema, ele explica que os vocábulos estão presentes nas duas frases iniciais do Gênesis (Bereshit), inseridos entre o nome divino citado duas vezes.  As palavras funcionariam como uma preparação para a purificação e correção da comunidade de Israel, preparando-a para receber os treze atributos da misericórdia.

 Em relação às cinco pétalas, Laitman analisa o significado de seu ensinamento: “As cinco folhas rígidas (sépalas) que cercam a rosa simbolizam a salvação” (elas têm a função de guardar a rosa dos espinhos que são entendidos como os nossos desejos egoístas). Ele lembra que a rosa também é comparada ao cálice sagrado: “Assim como o cálice da benção deve se apoiar em cinco dedos e não mais, também a rosa se assenta em cinco folhas rígidas (sépalas) que equivalem aos cinco dedos.” A rosa corresponderia ao cálice mencionado nos Salmos (Eu levantarei o cálice da salvação...).

Manuscritos escondidos

Escrito no século 2 da era comum pelo Rabi Shimon Bar Yochai (Rashbi),  o “Zohar” reúne todo o conhecimento espiritual judaico dos 3 mil anos anteriores, em especial os ensinamento da “Torá” (Pentateuco ou os cinco livros de Moisés). Nascido na Galileia, sob o domínio romano, Rashbi viveu treze anos com o filho Elazar em uma caverna onde escreveu a sua obra. Ele tinha participado da rebelião judaica contra os romanos liderada por Simão bar Kochba (ocorrida entre 132 a 135) e teve que se esconder para não ser executado. Sessenta anos antes o Segundo Templo de Jerusalém tinha sido destruído e os judeus condenados a um exílio que durou perto de dois mil anos.

Rashbi faleceu em 160 da era comum, aos 80 anos, e foi enterrado em Meron, no norte de Israel, perto de Tzfat (ou Safed), a cidade que se tornou o centro cabalístico de Israel. Por mais de mil anos os escritos do “Zohar” permaneceram escondidos em uma caverna sendo descobertos no século 13. Coube ao sábio espanhol Moses de Leon (1238-1305) a tarefa de compilar e publicar o seu conteúdo. Segundo o próprio “Zohar”, os segredos de sua sabedoria seriam revelados a todos, transcorrido o período atribuído para a correção da humanidade. Segundo o Talmud, antes do ano hebraico 6000, com o advento da era messiânica.

Missão e essência

No livro “A Rosa de 13 pétalas”, Steinsaltz chama a atenção para a missão que cada ser humano deve executar no mundo visando à correção da alma, uma tarefa específica que ninguém mais pode cumprir, mesmo que existam pessoas melhores e mais capacitadas para realizá-la. Contudo, somente àquela pessoa está destinada a fazê-la, de uma maneira pessoal e nas circunstâncias que lhe pertencem.

Isso porque o destino e a correção de uma pessoa não estão ligados somente com as coisas que ela própria faz ou cria. As existências anteriores de cada um têm influências consideráveis, visto que a vida é uma continuidade e determinados elementos que parecem não pertencer ao presente podem subir à superfície e será preciso completá-los ou corrigi-los. Cada alma tem uma determinada essência fundamental e para evoluir e se elevar ao nível correto é preciso pôr em ordem a parte que lhe cabe.


Nascido em Jerusalém, Steinsaltz foi aclamado pela revista “Time”, em 1988, como o “estudioso do milênio” por seu trabalho de estudo e divulgação do Talmud (‘estudo, aprendizagem’, em hebraico), a coletânea de explicações rabínicas sobre as leis e tradições do judaísmo. 

Leitura diária

Pelo calendário judaico estamos no ano de 5778 (correspondente a outubro de 2017), aproximando-nos do alvorecer messiânico, e apesar do conteúdo do “Zohar” se manter incompreensível para a maioria, a obra de Rashbi é acessada por milhões de pessoas que se dedicam a sua leitura diária, afirma Laitman que é membro do “World Wisdom Council” (Conselho Mundial da Sabedoria), ligado ao “Clube de Budapeste”, uma organização de pensadores e filósofos de diferentes religiões e tradições.

Mas, assim como o “Zohar”, outros documentos hebraicos foram escondidos em cavernas na Terra Santa e lá permaneceram por centenas de anos. É o caso de “Os Manuscritos do Mar Morto”, documentos com regras e recomendações religiosas escritas por membros da seita judaica dos essênios do século 1 da era comum e descobertas em 1947. Em “O nome da Rosa”, o escritor inspira-se nesses procedimentos milenares para montar a sua história e faz da biblioteca do mosteiro uma espécie de caverna que esconde uma  obra antiga e rara, dada como perdida e condenada pela Igreja.

O livro pivô da questão seria uma continuação da “Poética”, do filosofo grego Aristóteles (384-322 antes da e.c.), que trata da comédia e das virtudes do riso, um tema que a Igreja julgava estar associado à frivolidade e que dificultava a prática da fé.  Aproximando a realidade da ficção, Eco reforça a percepção de que, para determinadas gerações, livros podem ser potencialmente perigosos e, portanto, passíveis de serem destruídos.

 A rosa do paraíso

"Roseto Comunale", em Roma
Historiadores afirmam que a rosa é uma flor de origem oriental, com mais de cinco mil anos. Porém, a partir de descobertas de folhas fósseis de rosas em diversos locais do planeta, cientistas atestam que sua origem passa dos 25 milhões de anos, e é anterior à humanidade. No século 3 da era comum o rabino Joshua ben Levi, descreveu o Gan Eden (jardim do Éden) como uma paisagem de vales, rios e murtas, onde crescem 800 espécies de rosas. A descrição está nos “Midrashim” (derivado do radical hebraico ‘darash’, que significa pesquisar, investigar), manuscritos explicativos dos ensinamentos divinos em forma de parábolas, enigmas e histórias. As narrativas inicialmente orais, tendo como tema os versículos da “Torá”, foram compiladas e redigidas por sábios judeus no ano 500.

Há poucos anos, a referência mais singular (e controversa) a associar as rosas ao judaísmo aconteceu na cidade de Roma, onde a prefeitura criou um jardim municipal de rosas, o “Roseto Comunale”, sobre o cemitério judaico “L’Orto degli Ebrei”, datado do século 17.  A história, revelada em 2014 pelo jornal israelense “Haaeretz”, começou em 1934, quando o governo fascista de Benito Mussolini resolveu construir uma avenida atravessando o cemitério. As autoridades tinham prometido à comunidade judaica remover às lápides, porém o cemitério foi destruído.

Em 1950, dois anos após o término da Segunda Guerra, a municipalidade obteve o acordo dos judeus romanos que sobreviveram à tragédia da “Shoá” (calamidade, em hebraico, ou Holocausto) para que o antigo cemitério fosse transformado em um parque de rosas. Uma pequena placa de pedra no formato das tábuas dos 10 mandamentos e alamedas desenhadas em forma de uma menorá, o candelabro judaico de sete braços, lembram a origem judaica do espaço.

Reunindo mais de mil variedades de rosas de vários países, o “Roseto Comunale”, hoje com 10 mil metros quadrados, é procurado por turistas e apreciadores de flores. Porém, um aviso alerta para o fato de que milhares de restos mortais jazem no subsolo, o que faz com que a maioria dos judeus, por motivos religiosos ou por decisão pessoal, sinta-se impedida de visitar esse paraíso de rosas no coração de Roma.

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O Talmud na visão do rabino Steinsaltz:
                                                                
Em primeiro lugar, uma das características do Talmud é que ele se baseia no diálogo, ele se baseia na troca. Ele é diferente dos outros livros. Ele não diz: “Eu vou lhe contar uma coisa”. Ele diz: “Vamos discutir este assunto.”

O Talmud não é um livro que prega a sanidade, mas ele cria sanidade. A sanidade é uma das coisas mais difíceis de definir. É mais fácil definir a loucura. Mas a sanidade é a capacidade de manter coisas diferentes em certo estado de equilíbrio, mas sem deixá-las imutáveis para sempre.

Quando você é criado lendo esses escritos, ao ver alguma coisa, você se pergunta: “Qual é a pergunta que devo fazer sobre isto?”