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sexta-feira, 16 de junho de 2017

Portugal se reencontra com seu passado judaico

Artigos recentes  na imprensa portuguesa atestam a substancial mudança de parâmetros históricos em relação ao passado de Portugal. Estudiosos, professores universitários e intelectuais em geral, com o apoio dos órgãos governamentais, estão pondo à luz uma história subterrânea, oculta e mal contada que afetou milhões de pessoas ao longo dos séculos.

Presidente de Portugal 
Por Sheila Sacks

Mais de quinhentos anos após os judeus serem expulsos de Portugal, o presidente Rebelo de Sousa admite que tal fato foi um “erro histórico” que, ao longo dos séculos, se mostrou desfavorável ao país. “Com a saída dos judeus, Portugal perdeu em termos culturais, científicos, econômicos e financeiros”, observou o primeiro mandatário português aos jornalistas presentes em uma exposição sobre a presença judaica em território lusitano, ocorrida entre 20 de março e 29 de abril deste ano.

Instalada no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa, a exposição “Heranças e Vivências Judaicas em Portugal” foi organizada pela “Rede de Judiarias de Portugal – Rotas de Sefarad” (nome hebraico para a Península Ibérica), uma associação público-privada fundada em 2011, com sede em Belmonte, e que atualmente congrega 37 municípios portugueses. Cidades populosas como Lisboa e Porto também fazem parte da Rede que iniciou, em maio, um périplo pelo país levando a exposição para todas as localidades incluídas no projeto, a começar por Bragança, na região de Trás-os-Montes, no norte de Portugal.

Em paralelo, uma réplica da exposição também foi mostrada em Oslo, no Centro de Estudos do Holocausto e minorias religiosas (HL- Senreret), com o apoio da organização Eea Grants, que reúne a Noruega, Islândia e Liechtenstein em um comitê econômico para subvencionar programas sociais, culturais e esportivos em 16 países da Europa. A apresentação teve a finalidade de divulgar a vivência e o legado dos judeus sefarditas em diversas áreas na história de Portugal. Atualmente residem em Portugal três mil judeus, majoritariamente em Lisboa, Porto e Belmonte.

 Herança judaica

Eleito em março de 2016, Marcelo Rebelo de Souza, 68 anos, foi deputado pelo Partido Social Democrata (PSD) e ministro de Assuntos Parlamentares. Jurista e catedrático da Faculdade de Direito de Lisboa, ele também foi comentarista político de TV. Na conversa com jornalistas, Rebelo de Souza enfatizou o mérito de resgatar a herança judaica portuguesa. “Há muitos portugueses que não têm a noção de que antes de haver Portugal já havia comunidades judaicas fortes no território que viria a ser o nosso país. E não têm a noção da importância dessas comunidades”, afirmou.

Segundo o presidente, os judeus perseguidos que saíram de Portugal foram para outros pontos da Europa e principalmente para os Estados Unidos e demais países do continente americano. A exposição, a seu ver, permite perceber o tamanho dessa perda em termos de capital humano e também compreender o impacto desse dano. ”Nós perdemos aquilo que outras sociedades ganharam, ainda que a presença judaica em Portugal, em parte, continuou, de forma escondida, dissimulada, por detrás da aparente conversão ao cristianismo”, avaliou.

Sinagoga em Belmonte
Nos últimos anos o governo português tem apoiado o empenho de alguns setores da sociedade para resgatar a herança judaica sefardita (judeus originários da Península Ibérica, basicamente de Portugal e Espanha). Criada com essa finalidade, a “Rede de Judiarias de Portugal” vem trabalhando, há seis anos, com o objetivo de valorizar o patrimônio cultural e histórico judaico, entendido como um forte componente formador da identidade portuguesa e peninsular. De acordo com o site da organização, a contribuição dos judeus portugueses para a história do mundo foi enorme: “Desde a ciência náutica, que há mais de 500 anos deu ao país um avanço decisivo para o início da globalização, à evolução da economia mundial e da medicina, setores em que o papel dos sefarditas nacionais se tornou preponderante.”

Sobre esse incremento à ciência náutica, estudiosos sustentam que Pedro Álvares Cabral (1467-1520), nascido em Belmonte, e Cristóvão Colombo (1451-1506), que para alguns historiadores é português da região do Alentejo, seriam descendentes de judeus sefarditas e suas tripulações que aportaram no novo mundo seriam formadas por cripto-judeus.

Os judeus sefarditas têm costumes e ritos próprios – inclusive um idioma, o ladino, mistura de palavras hebraicas com o português, espanhol, árabe e catalão - diferentes dos judeus asquenazim, mais numerosos, oriundos de países da Europa Central e Oriental, como a Alemanha, Áustria, Rússia, Polônia e outros.

Turismo cultural

Museu Judaico em Belmonte
Além da busca pelo passado histórico, a Rede vem se dedicando ao incremento do turismo judaico em Portugal. O presidente da organização, António Dias Rocha, que também preside a Câmara Municipal de Belmonte, esteve em fevereiro em Tel Aviv, ao lado de empresários portugueses, participando da Feira Internacional de Turismo do Mediterrâneo. Na ocasião, ele reforçou o papel da Rede no nicho de oferta de turismo cultural que no caso específico de Portugal tem a herança judaica como um dos seus mais significativos e interessantes atrativos.

A localidade de Belmonte, sede nacional da Rede e berço do navegante Pedro Álvares Cabral, é considerada a única vila da Península Ibérica onde a organização comunitária judaica se manteve de forma secreta ou discreta, desde o decreto de expulsão de 1496, atravessando todo o período da inquisição (de 1536 a 1821) e chegando até os nossos dias. Situada a 300 quilômetros de Lisboa, na região central de Portugal, Belmonte tem cerca de 3.500 habitantes, cem deles judeus. Reconhecida oficialmente em 1989, a comunidade tem uma sinagoga, a “Beit Eliahu”, inaugurada em 1996; um cemitério judaico, aberto em 2001; e o Museu Judaico, o primeiro a ser inaugurado no país, em 2005. O prédio, que recentemente foi reformado, abriga mais de uma centena de peças religiosas e retrata a história da presença sefardita em Portugal, usos e costumes, e um memorial sobre a Inquisição.

 Produtos casher

Representante da organização “Shavei Israel” (Retorno a Israel), o rabino Elisha Salas, 59 anos, da comunidade judaica de Belmonte, elogia o trabalho da Rede que considera fundamental para difundir os 500 anos de história da presença judaica em Portugal. “É necessário desenterrar a história judaica, levá-la às pessoas e expor a riqueza que se encontra escondida no território português”, enfatiza. Com sede em Jerusalém, a “Shavei Israel” se dedica a resgatar os chamados “judeus perdidos”,  em referência aos judeus convertidos à força ao cristianismo à época da Inquisição.

 De origem chilena e descendente de judeus sefarditas, o rabino Salas está em Belmonte desde 2009 e tem incentivado a elaboração de produtos casher (do hebraico ‘correto’),  alimentos que são produzidos de acordo com as leis judaicas em relação ao abate de animais, à proibição de ingestão de carne suína e à mistura de laticínios com carne. Ele afirma que já existem restaurantes que servem comida conforme os rígidos preceitos judaicos de alimentação. “Desloquei-me aos locais para ensinar e ter a certeza de que a comida é confeccionada mediante as nossas regras e certifiquei esses restaurantes. Atualmente existem produtos como queijos, compotas, carnes, bebidas e vinhos que podem ser adquiridos com o selo casher”, reforça.

Antes de se fixar em Belmonte, o líder judaico ficou à frente da Sinagoga do Porto, de 2004 a 2007. Membro do Conselho Consultivo da Rede – ao lado de nomes importantes no cenário cultural português, como o escritor americano Richard Zymler, residente no Porto, autor do best-seller “O Último Cabalista de Lisboa”, e Jorge Martins, historiador, escritor e diretor da coleção de livros “Sefarad”  -  o rabino Salas, em 2015, solicitou a naturalidade portuguesa em função da regulamentação da lei  que possibilita essa concessão a descendentes de judeus sefarditas expulsos de Portugal.

Memorial em Lisboa
Desculpas oficiais

No início de 2015, o governo português aprovou as novas regras para a atribuição da nacionalidade portuguesa por naturalização aos descendentes de judeus sefarditas expulsos do país há mais de 500 anos.  Na ocasião, a então ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz, afirmou que a nova lei era a “atribuição de um direito”, reconhecendo que judeus viveram na região muito antes de o reino português ter sido fundado no século 12.

 Promulgado pelo presidente à época, Aníbal Cavaco Silva, o Decreto-Lei nº 30-A/2015 foi publicado no Diário da República em de 27 de fevereiro de 2015, e entrou em vigor em 1º de março. Antes, pedidos públicos de desculpas aos judeus pela Inquisição, perseguições e mortes foram oficializados em 1988 e 2000 pelo ex-presidente Mário Soares (falecido em janeiro deste ano) e pelo patriarca de Lisboa, D.José Policarpo (1936-2014),respectivamente.

Em 2008, um memorial em forma de uma estrela de David foi inaugurado em frente à tradicional igreja de São Domingos, uma construção do século 13 localizada na praça do Rossio, no centro de Lisboa, para lembrar uma das mais trágicas páginas da história dos judeus em Portugal: o genocídio de mais de 2 mil  “cristãos-novos” (judeus convertidos à força, a partir de 1496, por édito do rei D.Manuel I),  iniciado no domingo de Páscoa e que ficou conhecido como o  massacre (pogrom) de Lisboa. Durante três dias, frades dominicanos incitaram os moradores da cidade a matar e queimar os conversos (alguns historiadores afirmam que foram mortas 4 mil pessoas) considerados “eternamente judeus” pela maioria da população. A inscrição na escultura lembra a chacina: “Em memória dos milhares de judeus, vítimas da intolerância e do fanatismo religioso, assassinados no massacre iniciado a 19 de abril de 1506, neste largo.”

 Conversão forçada

Sinagoga de Lisboa
Remanescentes de uma próspera comunidade que por volta de 1490 chegaria a 30 mil pessoas e que após a chegada dos judeus expulsos da Espanha, em 1492, somou perto de 120 mil, essa considerável população judaica, quatro anos depois, foi obrigada a se sujeitar à conversão forçada ao cristianismo ou sair definitivamente de Portugal, por imposição real. A matança da Páscoa, em 1506, acelerou essa fuga e aqueles que permaneceram tiveram que encarar, trinta anos depois, a intolerância e a violência da Inquisição, que levou às fogueiras pelo menos duas mil pessoas, a maioria de judeus convertidos.

Atualmente, muitos portugueses estão redescobrindo as suas raízes judaicas, salienta Gabriel Steinhardt, presidente da Comunidade Israelita de Lisboa que hoje congrega 300 famílias judaicas. Para ele, à época dos descobrimentos, 10% da população portuguesa, calculada em 1 milhão de pessoas, eram de cripto-judeus, ou seja, judeus que seguiam a sua fé em segredo por medo das perseguições religiosas e ao mesmo tempo publicamente se apresentavam como cristãos, os denominados cristãos-novos. “Este é um fenômeno que influencia a sociedade civil portuguesa até hoje, não havendo na realidade nenhum português que, independentemente da religião que pratique, possa ter a certeza de que não possui uma costela ancestral judaica.”

Assim, muitos portugueses estão descobrindo tradições misteriosas conservadas por avós e bisavós, como, por exemplo, acender velas nas noites de sexta-feira, o ritual da limpeza da casa também nas sextas, e a elaboração do pão achatado cozido todos os anos, por ocasião da primavera na Europa, quando se comemora a Páscoa judaica. Essas e outras lembranças que sobreviveram de um rico passado judaico são o testemunho do grande risco que ao longo dos séculos os cripto-judeus ou anussim (do hebraico ‘forçado’), ou ainda marranos (termo inicialmente pejorativo, talvez advindo de vocábulo peninsular da Idade Média que designava suíno) enfrentaram praticando secretamente o judaísmo.

Sinagoga do Porto
Histórias se contam que os judeus que foram obrigados a deixar Portugal, assim como os judeus da Espanha, levavam consigo a chave da casa na esperança de um dia retornarem ao lar. De geração em geração, essas chaves foram mantidas guardadas em segredo, no exílio, mas a grande maioria se perdeu nas fendas dos séculos.

Atualmente, pouco mais de 3 mil judeus vivem em Portugal. Com a implementação da lei que oferece a cidadania portuguesa aos que demonstrarem por documentos (registros em sinagogas e cemitérios judaicos, títulos de residência, propriedades, testamentos e outros comprovantes de ligação familiar com a comunidade serfadita de origem portuguesa) serem descendentes dos judeus sefarditas que foram expulsos da Península Ibérica no século 15, espera-se que uma nova leva de judeus de várias partes do mundo volte seus olhos para as terras lusas. Pelos cálculos de diversas organizações judaicas existem 3,5 milhões de judeus sefarditas espalhados em dezenas de países.

Nacionalidade para 431 sefarditas

Com base na nova lei de cidadania, o governo português já concedeu a nacionalidade portuguesa a 431 sefarditas (de um total de mais de 3.800 pedidos), sendo que cerca de 63% são provenientes da Turquia (271 cidadãos). O país tem uma comunidade de 16.500 judeus sefarditas e é de lá que surgem 40% da totalidade dos pedidos de cidadania. Em seguida vem Israel e Brasil. Estima-se que no Brasil existam 40 mil judeus sefarditas de uma comunidade que soma 110 mil judeus.

Apesar do interesse das autoridades portuguesas em incrementar esse tipo de imigração, apenas 39 brasileiros preencheram os requisitos necessários para a sua naturalização, entre 2015 e dezembro de 2016, de acordo com ministério da Justiça de Portugal. Em contrapartida, de 2010 a 2016, mais de 87 mil brasileiros conseguiram a cidadania portuguesa, a grande maioria por serem filhos e netos de portugueses.

Por outro lado, existem no Brasil várias comunidades de bnei anussim ( do hebraico ‘filhos de forçados’ ou cristãos descendentes de judeus convertidos à força) espalhadas pelo país, principalmente nas regiões Norte e Nordeste, que estão tentando se reencontrar com suas raízes judaicas. Segundo estudiosos, até 1660 os anussim eram a totalidade dos portugueses que se estabeleceram na colônia, fugindo da Inquisição. E a sinagoga mais antiga das Américas foi construída em Recife, a “Kahal Zur Israel” (Rocha de Israel), em 1636, no período das invasões holandeses(1624-1654).

Atualmente calcula-se que pelo menos 5 milhões de brasileiros cristãos podem ser descendentes de cripto-judeus e muitos deles têm dificuldade de ingressarem nas comunidades judaicas que se tornaram mais fechadas por conta do antissemitismo que nunca deixou de existir.

Também os sefarditas ingleses já demonstram vontade de obter a cidadania portuguesa depois da decisão do Reino Unido de sair da União Europeia, o chamado “Brexit” (abreviatura de Britain Exit), em 23 de junho de 2016. Segundo o jornal britânico “The Guardian”, o porta-voz da comunidade judaica do Porto, Michael Rothwell, afirmou que nos dois meses subsequentes à votação 400 pessoas consultaram a instituição sobre a possibilidade de obtenção da cidadania para terem um passaporte europeu. O jornal destaca que o interesse dos judeus ingleses por Portugal tem se mostrado maior do que pela Espanha, cuja lei de cidadania de retorno é considerada mais complexa. Para a Federação das Comunidades Judaica da Espanha, um dos motivos seria o fato de Madri exigir testes de conhecimento da língua espanhola dos candidatos, o que não acontece em Portugal.

Algarve
Pacificação com o passado

Em artigo publicado na revista semanal “Visão”, em março deste ano (‘Porque estudar os sefarditas?’), o coordenador da área de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona, em Lisboa, professor Paulo Mendes Pinto, faz uma reflexão sobre a herança sefardita em Portugal e a necessidade de resgatá-la como forma de pacificação com um passado que foi imposto e que se tornou parte da natureza dos portugueses. “A busca pelo conhecimento da história sefardita, o valorizar desse patrimônio e a recuperação e construção de espaços a ela dedicados, é um equacionar da própria identidade nacional”, escreve. “Hoje, sem os constrangimentos do pensamento inquisitorial, libertos para um reencontro que, afinal, é conosco e não com nenhuns ‘outros’”.

Investigador da Cátedra de Estudos Sefarditas “Alberto Benveniste” da Universidade de Lisboa, Mendes Pinto afirma que é preciso “equacionar o que, como coletivo, perdeu-se com a Inquisição e com o desenvolvimento de um catolicismo inquisitorial”. Ele lembra que com a fuga das mais brilhantes mentes e dos possuidores das melhores competências, Portugal perdeu em conhecimento e progresso. Deixou escapar “um passado que também tem, na herança sefardita, o gosto pelo risco, pela descoberta, pelo empreendedorismo, pelo cosmopolitismo e pela cultura.”

Guarda
Mendes Pinto destaca ainda em seu texto que a história dos sefarditas portugueses foi uma “história de medo construída nas cidades, nas vilas e nas aldeias onde o cripto-judaísmo se foi implantando como forma de vida dupla, com o ‘credo na boca’ para provar a qualquer momento que se era bom católico”. Assinala que com as perseguições ao longo do século 15 e com a instalação da Inquisição a sociedade portuguesa “se transformou numa sociedade da denúncia, da mediocridade, do desrespeito pela consciência e da menorização do pensamento e recusa à crítica”.

Mas, hoje, Portugal se apresenta mais aberto para um reencontro com o seu passado e Mendes Pinto acredita que a forma como a sociedade portuguesa vai tratar essa memória e passado é que irá definir o seu presente e o futuro como nação. Nesse ambiente propício a uma aproximação e apaziguamento de questões históricas e religiosas, um projeto de museu judaico toma forma no tradicional bairro de Alfama, em Lisboa.

Contando com doações internacionais e o apoio da municipalidade, o Museu Judaico de Lisboa será instalado no Largo de São Miguel, coração de Alfama, um local considerado de forte simbologia pela comunidade judaica portuguesa porque lá existiu uma “judiaria” e uma sinagoga. O fato provocou questionamentos por parte de associações de proteção ao Patrimônio que temiam a descaracterização do lugar onde está situada a Igreja de São Miguel, classificada como patrimônio cultural de Portugal, e de prédios antigos construídos antes do terremoto de 1755 que destruiu grande parte da cidade. Mas a Câmara de Lisboa julgou, por unanimidade, que o projeto arquitetônico do museu não coloca em risco o caráter e a autenticidade do histórico largo de São Miguel e que a construção dos dois edifícios que vão compor o museu cumpre toda a legislação em vigor.

O Museu Judaico de Lisboa terá um custo de 2,9 milhões de euros e será gerido pela Associação de Turismo de Lisboa. O objetivo central é contar a história dos 800 anos de presença judaica em Portugal. A idealizadora do programa pedagógico do museu, Esther Mucznik, diz que o local funcionará como um centro de recolhimento, preservação e divulgação do patrimônio material e imaterial judaico-português. Fundadora da Associação Portuguesa de Estudos Judaicos e membro da Comissão Nacional de Liberdade Religiosa, Mucznik foi vice-presidente da Comunidade Israelita de Lisboa (CIL), de 2002 a 2016, e é autora de vários livros sobre a temática judaica, como “Grácia Nasi, a judia portuguesa do século XVI que desafiou o seu próprio destino” (2010) e  “Portugueses no Holocausto (2012).

Sobrenomes sefarditas

No texto do decreto de nacionalidade emitido pelo ministério da Justiça estão listados uma centena de sobrenomes (apelidos) portugueses sefarditas, com a ressalva que muitos já se encontram misturados com sobrenomes “castelhanos”.  Sabendo-se também que a simples comprovação do sobrenome não é suficiente para a entrada com o pedido de cidadania. É preciso incluir dados complementares, cabendo às Comunidades Israelitas de Lisboa e do Porto a emissão do documento de confirmação da ascendência sefardita no processo de naturalização.

Eis a lista dos sobrenomes sefarditas citados no decreto: Abrantes, Aguilar, Almeida, Álvares, Amorim, Andrade, Avelar, Azevedo, Barros, Basto, Belmonte, Brandão, Bravo, Brito, Bueno, Cáceres, Caetano, Campos, Cardoso, Carneiro, Carvajal, Carvalho, Castro, Crespo, Coutinho, Cruz, Dias, Dourado, Duarte, Elias, Estrela, Ferreira, Fonseca, Franco, Furtado, Gaiola, Gato, Gomes, Gonçalves, Gouveia, Granjo, Guerreiro, Henriques, Josué, Lara, Leão, Leiria, Lemos, Lobo, Lombroso, Lousada, Lopes, Macias, Machado, Machorro, Martins, Marques, Mascarenhas, Mattos, Meira, Melo e Prado, Mello e Canto, Mendes, Mendes da Costa, Mesquita, Miranda, Montesino, Morão, Moreno, Morões, Mota, Moucada, Negro, Neto, Nunes, Oliveira, Osório (ou Ozório), Paiva, Pardo, Pereira, Pessoa, Pilão, Pina, Pinheiro, Pinto, Pimentel, Pizarro, Preto, Querido, Rei, Ribeiro, Rodrigues, Rosa, Sarmento, Salvador, Silva, Soares, Souza, Teixeira, Teles, Torres, Vaz, Vargas e Viana.

Por último, mais um dado histórico para reforçar o apreço e a solidariedade aos bnei anussim brasileiros. Por força da Inquisição que chegou ao Brasil a partir de 1579, foram levados presos aos Autos da Fé em Lisboa 400 cristãos-novos acusados de judaizantes. Destes, 20 foram executados, 18 degolados e queimados e dois colocados vivos nas fogueiras. Um passado que feriu a ferro e fogo centenas de famílias brasileiras perseguidas pela intolerância religiosa, cujos descendentes, aos milhares, nem imaginam o terror e o sofrimento que permearam a vida de seus antepassados, desconhecendo, ainda, a rica herança cultural que eles trouxeram e que acabou se perdendo, lamentavelmente, pelos caminhos do tempo.
  

quinta-feira, 1 de junho de 2017

Desmatamento avança sobre as florestas brasileiras


Pesquisas de órgãos ambientais divulgadas pela imprensa nos dias 29 e 30 de maio dão conta de que a Mata Atlântica sofreu um brutal desmatamento entre 2015 e 2016, atingindo a marca de 291 quilômetros quadrados, o equivalente a mais de 29 mil campos de futebol. A perda é 57% maior do que a registrada no biênio 2014-2015. Os números foram apresentados pela Fundação SOS Mata Atlântica em parceria com o Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe).

Presente no Rio de Janeiro e em mais 16 estados brasileiros, a Mata Atlântica já ocupou mais de 1 milhão de quilômetros quadrados ao longo da costa nacional. Hoje restam pouco menos de 12% da cobertura original. Ainda assim, um tesouro de biodiversidade em matéria de vegetação e de espécies animais. Bahia, Minas Gerais, Paraná e Piauí lideram a lista onde o desmatamento foi mais intenso, com florestas nativas queimadas, retirada ilegal de madeira e limpeza das áreas para a implantação de atividades de pecuária, cultivo de grãos, plantio de eucaliptos e até produção de carvão. Acrescentam-se a essas intervenções predatórias, a expansão urbana desordenada e a industrialização.

É preciso lembrar que a Mata Atlântica tem mais de 20 mil espécies vegetais, um patrimônio biológico e genético maior do que o da Europa (12.500 espécies) e da América do Norte (17 mil).  Em relação à fauna, este bioma abriga 992 espécies de aves, 370 espécies de anfíbios, 200 espécies de répteis, 298 de mamíferos e cerca de 350 espécies de peixes. Um privilegiado repositório biológico e genético que merece a atenção e a mobilização de todos na salvaguarda de nossa legislação de proteção ambiental, que vem sendo atropelada por mudanças no Código Florestal, pela reversão e afrouxamento na emissão de licenças ambientais e pela redução de unidades de conservação.

Vale o alerta e a pressão da sociedade em relação ao tema, visto que a bancada ruralista, nas eleições de 2014, aumentou seu poder de fogo e hoje conta com 263 dos 531 dos deputados federais, 51% dos parlamentares da Câmara. No Senado, dos 81 senadores, 32 são ligados ao setor da agropecuária.

Berçário ecológico

O Brasil é um país de proporções continentais: seus 8,5 milhões de quilômetros quadrados ocupam quase a metade da América do Sul e abarcam várias zonas climáticas, como o trópico úmido no Norte, o semiárido no Nordeste e áreas temperadas no Sul. 

Além da Mata Atlântica, o país possui o maior ecossistema tropical do planeta: a floresta amazônica. Ao lado de outros biomas nacionais como o Cerrado, Caatinga, Pantanal mato-grossense, Pampa e Zona costeiro-marinha, o Brasil concentra, dentro de seu território, a maior biodiversidade de flora e fauna da terra. Somente na floresta amazônica são mais de 103.870 espécies animais, 43.020 espécies vegetais, 1.300 pássaros e milhões de insetos cadastrados pela ciência.  A metade das espécies terrestres está na Amazônia.

Ocupando 49% do território brasileiro, com 4,2 milhões de quilômetros quadrados - de um total de mais de 5,5 milhões que se estendem pela Colômbia, Venezuela, Equador, Bolívia, Suriname (antiga Guiana holandesa), Guiana (antiga Guiana Inglesa) e Guiana Francesa – a floresta amazônica tem quase o tamanho da Austrália, é maior do que a Europa Ocidental e quase tão grande quanto os EUA. No Brasil, esse bioma cobre nove estados brasileiros, a saber: Amazonas, Pará, Mato Grosso, Acre, Rondônia, Roraima, Amapá, parte do Tocantins e parte do Maranhão.

Sua bacia hidrográfica é a maior do mundo. O rio Amazonas, com mais de 1.100 afluentes, se estende por 6,8 mil quilômetros de extensão, a mesma distância que separa a cidade de Nova Iorque da capital alemã Berlim. É o maior rio em volume de água e o segundo mais longo do mundo, depois do Nilo, no Egito. Tem 25 mil quilômetros de águas navegáveis e às suas margens vivem 24 milhões de pessoas, incluindo 342 mil indígenas de 180 etnias distintas.

Nunca é demais lembrar que as florestas naturais são fundamentais para a produção e o abastecimento de água e a proteção do solo, contribuindo também para a proteção das encostas e para a regulação climática.

 Danos ambientais

De posse desse tesouro planetário, cabe ao Brasil a nem sempre fácil tarefa de cuidar de sua preservação ambiental. Infelizmente, também a floresta amazônica sofreu sensível dano entre 2015 e 2016, com o desmatamento de 7,9 mil quilômetros quadrados de sua vegetação, um aumento de 29% em relação a 2014. A perda equivale a uma área 135 vezes maior do que Manhattan, no condado de Nova Iorque. Em termos de emissão de gases de efeito estufa na atmosfera, a estimativa é de que esse desmatamento tenha liberado 586 milhões de toneladas de dióxido de carbono, a mesma quantidade que a frota de automóveis do país, calculada em 50 milhões, emite em 8 anos.

Segundo a ONG Greenpeace, o aumento da devastação das florestas brasileiras tem ocorrido, entre outras causas, pelas continuadas anistias que o governo sinaliza para aqueles que desmatam ilegalmente; a falta de incentivo à criação de novas unidades de conservação ambiental e de proteção aos povos indígenas; e a força da bancada ruralista no Congresso. As queimadas e a limpeza dos terrenos para a expansão da pecuária estão convertendo as florestas em pastos. O Pará já detém o terceiro maior rebanho do país, e Mato Grosso, com 29 milhões de cabeças de gado, é líder na pecuária e na produção de soja. O Greenpeace também alerta para a expansão da pecuária no sul do estado do Amazonas.

Em entrevista ao jornal “Folha de São Paulo”, no início do ano, o presidente de uma multinacional de máquinas agrícolas, Carlo Lambro, de origem italiana, analisando o setor de agronegócio brasileiro, manifestou sua surpresa com o tamanho das propriedades rurais. “Há fazendas no Brasil que são grandes como uma região da Itália. Milhares de hectares, imagine.” A observação vai ao encontro de um dado, no mínimo indecoroso em relação à desigualdade fundiária, já apontado pela ONG Oxfam Brasil, ligada à Universidade britânica de Oxford, em 2016. De acordo com a organização, menos de 1% dos grandes proprietários concentram 45% de toda a área rural brasileira.

Listado em 2015 como o sétimo país mais poluidor do planeta pelo “World Resources Institute” (WRI Brasil), as emissões no Brasil - ao contrário da China, EUA e União Europeia, que lideram o ranking e têm na matriz energética sua principal fonte de gases poluentes - estão divididas igualitariamente entre os setores de energia, agricultura, indústria e resíduos.

Um quadro deveras desolador que pouco combina com a retórica diplomática da chancelaria brasileira expressa em um comunicado emitido após a decisão do presidente americano Donald Trump de retirar os EUA do Acordo de Paris, em 1º de junho. O documento enfatiza o compromisso do Brasil na implementação de programas de redução de gases de efeito estufa e manifesta “profunda preocupação e decepção” pela atitude de Trump. Afirma, também, que “o combate à mudança do clima é um processo irreversível, inadiável e compatível com o crescimento econômico”, e que o governo brasileiro está “comprometido” com as diretrizes de Pacto de Paris, firmado por 195 países, em dezembro de 2015.