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sexta-feira, 24 de novembro de 2017

A linguagem perdida

por Sheila Sacks

“Cada pensamento desloca as partículas do cérebro, pondo-as em movimento e disseminando-as pelo Universo. Cada partícula da matéria existente deve ser um registro de tudo o que aconteceu.” “Principles of Sciences”, de William Stanley Jevons (1835-1882) e Charles Babbage (1791-1871)


O instrumento da linguagem continua aquém dos mistérios da Vida e do Cosmos. No século 19, pensadores históricos buscaram acender nas palavras a luz que poderia iluminar o universo não-lógico que ainda nos espanta nessa segunda década do século 21. Percepções múltiplas sobre o Inexplicável e o Infinito estão gravadas em milhões de páginas que desafiam a capacidade humana de compreender e assimilar os fenômenos fundamentais da existência. É o mundo infinito que a linguagem não alcança

Entretanto, hoje, acelerando um processo selvagem de dispersão mental, restamos reféns de palavras e encadeamentos frívolos e individualistas, ilhados em uma redoma de pensamentos manipulados por uma máquina de informações e sugestões que nos distanciam, cada vez mais, de um aprofundamento e de uma possível redescoberta da essência da linguagem e de sua possível expansão na tradução de pensamentos que versam sobre o incógnito, o invisível e o que não conhecemos.

Palavras ocultas

No livro “Key to the Hebrew-Egyptian mystery: in the source of measures”, publicado em 1875, o pesquisador maçom e estudioso da Cabalá, James Ralston Skinner (1830 – 1893) afirma estar convencido de que existiu uma linguagem antiga desaparecida, e de que restam numerosos vestígios. “A singularidade dessa linguagem era que podia estar contida dentro de outra, por um processo oculto, não sendo percebida senão com a ajuda de certas instruções.”

Skinner, que nasceu nos EUA, observa que “as letras e os signos silábicos possuíam, ao mesmo tempo, os poderes ou as significações dos números, das figuras geométricas, das pinturas ou ideografias, e dos símbolos, cujo objetivo era determinado e especificado por meio de parábolas, sob a forma de narrações completas ou parciais, mas que também podiam ser expostas separadas ou independentemente, e de vários modos, por meio de pinturas, obras de pedra e construções de terra”.

Destaca, ainda, que aquela antiga linguagem estava profundamente infiltrada nos textos hebraicos, de tal forma que se empregando os caracteres escritos, cuja pronúncia forma a linguagem definida, podia-se intencionalmente comunicar uma série de ideais muito diferentes das que se expressam com a leitura de signos fonéticos. Para o pesquisador, realmente existiu na história da raça humana uma linguagem primitiva perfeita que por fatores desconhecidos desapareceu ou se perdeu no tempo.

Palavras insuficientes

Por sua vez, a medium e pensadora russa Helena Petrovna (1831-1891), principal figura da teosofia moderna, reclamava da insuficiência de palavras adequadas na linguagem moderna para a abordagem de determinados temas. Dissertando sobre autoconhecimento e consciência, a estudiosa das religiões e autora da “Doutrina Secreta” (1888) diz textualmente: “Tal é a pobreza da linguagem humana que não dispomos de termos para distinguir o conhecimento em que não pensamos ativamente do conhecimento que não podemos reter na memória.” E reflete: “Mais difícil então será encontrar palavras para descrever os fatos metafísicos e abstratos e distinguir-lhes as diferenças.”

Isso porque as pessoas definem as coisas de acordo com as suas aparências, ponderava Blavatsky. “À Consciência Absoluta chamamos ‘Inconsciência’, porque assim nos parece que deva ser, do mesmo modo que denominamos ‘Trevas’ ao Absoluto, porque este parece de todo impenetrável a nossa compreensão finita.” Contudo, apesar das dificuldades de expressão, a escritora fazia ressalvas ao hebraico e ao sânscrito “onde cada letra tem sua significação oculta e sua razão de ser; onde é uma causa e também o efeito de uma causa precedente”. Ela sugere que a combinação das letras desses alfabetos produzia muitas vezes “efeitos mágicos”. 

Ação da palavra

Alef, a primeira letra do alfabeto hebraico
Ainda sobre a mágica das palavras e sua influência na existência das pessoas, o escritor francês Jean-Baptiste Pitois (1811-1877) escreve: “Pronunciar uma palavra é evocar um pensamento e fazê-lo presente; o poder magnético da palavra humana é o começo de todas as manifestações no Mundo Oculto. Pronunciar um nome é não somente definir um Ser (uma Entidade), mas submetê-lo à influência desse nome e condená-lo, por força da emissão da palavra (Verbum), a sofrer a ação de um ou mais poderes ocultos.”

E continua: “As coisas são, para cada um de nós, o que a palavra determina quando as nomeamos. A palavra (Verbum) ou a linguagem de cada homem é, sem que disso ele tenha consciência, uma benção ou uma maldição; e é por isso que a nossa atual ignorância acerca das propriedades da matéria nos é tantas vezes fatal. Sim, os nomes (e as palavras) são benéficos ou maléficos: em certo sentido são nocivos ou salutares, conforme as influências ocultas que a Sabedoria suprema associou a seus elementos, isto é, às letras que compõem e aos números que correspondem a estas letras.” 

O texto acima contido no livro “Historie de la Magie, du monde Surnaturel et de la fatalité a travers les Temps et les Peuples ”, foi escrito em 1870. Jean-Baptiste, que também assinava como Paul Christian, foi educado para ser sacerdote, mas optou por se tornou jornalista e escritor, dedicando-se a assuntos esotéricos.

Poder da Palavra

Nessa mesma linha de pensamento, uma obra anterior, datada de 1859, assinada pelo também francês Eliphas Levi (1810-1875), nascido Alphonse Louis Constant, já invocava a existência de um alfabeto oculto e sagrado, composto de ideias absolutas ligadas a signos e números e que realiza, por suas combinações, as matemáticas do pensamento.

Na obra “A Chave dos Grandes Mistérios”, Levi afirma que os hebreus, os egípcios e depois os pitagóricos tinham conhecimento desse alfabeto único. Teólogo e ex-sacerdote católico, Levi se aprofundou na filosofia da Cabalá e no seu principal livro dogmático, o “Zohar”, para formar a base de suas ideias. Segundo ele, proferir um nome seria criar ou chamar um ser. No nome estaria contida a doutrina verbal ou espiritual do próprio ser. “A palavra age sobre as almas e as almas reagem sobre os corpos; pode-se, portanto, assustar, consolar, fazer adoecer, curar, matar e ressuscitar por palavras”, assegura.

Acreditando na força monumental das palavras, Levi também faz um alerta aos leitores: “As palavras mais perigosas são as palavras vãs e proferidas levianamente, porque são abortos voluntários do pensamento. Uma palavra inútil é um crime contra o espírito de inteligência. É um infanticídio intelectual.” Autor de uma dúzia de livros e considerado por seus pares o maior mestre do renascimento mágico do século 19, Levi criou uma série de axiomas ao abordar, em um capítulo próprio, o que designou de “o poder da palavra”. Ele associa todo o esplendor e a força da palavra à verdade e à justiça ao proclamar que “toda palavra de verdade é o começo de um ato de justiça”.

 Mas, para a autora da “Doutrina Secreta”, obra fundamental para o estudo da Teosofia, “a palavra articulada tem um poder que os sábios modernos não só desconhecem, mas nem sequer suspeitam, e por isso neles não acreditam”.  Blavatsky reforça a tese de que “parece ter havido uma linguagem e um sistema de ciência transmitido à primeira humanidade por homens de uma raça mais adiantada, que poderia aparecer como divina aos olhos daquela humanidade infantil”. Um conhecimento primordial assentado em uma teologia ancestral - de símbolos, mitos e signos -  transmitido ao longo dos tempos por uma linhagem de iniciados de variadas crenças e culturas. Teoria que de certa forma se harmoniza com o pensamento do filósofo grego Plotino (204-270 da era comum), autor de “Enéadas”, quando este atesta que “tudo é símbolo, e sábio é quem lê em tudo”.

Nota: No século 20, o filósofo alemão Walter Benjamim (1892-1940) também foi um estudioso da magia da linguagem. Em seu ensaio “Sobre a Linguagem em Geral e sobre a Linguagem Humana”, ele desenvolveu a sua teoria de que a linguagem humana das palavras pode ser compreendida enquanto “tradução” da “muda linguagem da natureza”. É dele a frase: “Ler o que nunca foi escrito."

Texto atualizado.