linha cinza

linha cinza

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Guerras: realidade versus razão - Um ano do conflito de Gaza


por Sheila Sacks

publicado no site Rio Total
Para que servem as guerras contra Israel? De pronto para escancarar que a realidade e a razão são departamentos distintos e que na maioria das vezes nem sequer estão relacionados. Também para distinguir e separar o mundo pressuposto das ideias, aparências e conjecturas filosóficas, do universo de experiências cruéis, assustadoras e muitas vezes, sem sentido, mas nem por isso menos eloquente em sua natural ausência de propósitos inteligíveis.

Há três séculos, o pensador iluminista Pierre Bayle (1647-1706) já concluía em seu “Dicionário Histórico e Crítico” que a história da civilização não é mais do que um relato dos crimes e infortúnios da raça humana. Observação conectada à assertiva de seu colega holandês, Baruch Spinoza (1632-1677), que prevenia os incautos sobre o desconcertante atributo da natureza: o de não se submeter às leis da razão humana. Dizia o sábio de Amsterdã na obra “Tratado Político” que “tudo o que, na ordem natural, possa nos parecer absurdo e mau, só tem esta aparência porque conhecemos as coisas apenas em parte, ignoramos tal ordem inteira e todas as ligações entre as coisas”. Quanto ao estado constituído e seus cidadãos, ele ajuizava: “Os homens não nascem civis, fazem-se”.

Gota d´água

A última guerra contra Israel, sob a batuta do Hamas, em janeiro de 2009, é a ilustração perfeita da eterna controvérsia que anima os discursos filosóficos, desde o grego Platão, 300 anos antes da Era Comum, na questão que diz respeito ao aparente e a realidade. Ou seja, a última instância de julgamento seria representada pelas ideias ou pela experiência? A pergunta está formulada no livro “O Mal no Pensamento Moderno” (2002), da  ensaísta norte-americana Susan Neiman, 55 anos, que também instiga o leitor com a provocativa afirmação de que “a preocupação que alimentou os debates (nesses séculos) sobre a diferença entre aparência e realidade não foi o medo de que o mundo pudesse, no final das contas, não ser como nos parecia, mas sim o medo de que fosse”.

Diante da explosão do embate em Gaza, iniciado em 27 de dezembro de 2008 - onde cabe citar novamente Neiman em sua perplexidade: como uma gota d´água torna-se a última? – e nas semanas que se seguiram, uma torrente de argumentos lógicos e racionais da parte das comunidades judaicas mundiais se solidificou em apurados e consistentes artigos em defesa da posição israelense. Também emotivos textos que se gostariam que fossem esclarecedores à opinião pública se aglomeraram nos turbulentos espaços virtuais da internet e, em menor número, ousaram se infiltrar nas ardilosas páginas dos jornais. Porém não surtiram o efeito desejado. O mundo se fez de surdo e um ano depois o estado de Israel permanece sob o bombardeio cerrado de grande parte da mídia.

Consenso cínico

Entretanto, desde 1982, quando da “Operação Paz para a Galileia” realizada por Israel no sul do Líbano, com a missão de deter os ataques terroristas da OLP (Organização para a Libertação da Palestina) ao seu território, todas as ações israelenses levadas a efeito com o intuito de barrar a escalada de provocações letais que desestabilizam o cotidiano e impõem o medo à sua população civil, são interpretadas e julgadas pela mídia internacional e políticos de diversas nações, sob um contexto irreal e insensato, que exclui dos agressores os sintomas exibidos de uma perene síndrome de guerra oriundos da semeadura do ódio, da cultura do terror, da doutrina da violência e da ideologia da intolerância. Um aprendizado invertido de humanismo e cidadania que, de maneira indecorosa, é atiçado e disseminado por lideranças fundamentalistas assentadas nas vizinhanças do estado judeu.

Desconsiderando os antecedentes históricos e as evidências contemporâneas de uma militarização focada na defesa e na preservação de seu berço nacional, da parte de Israel, em oposição a uma tática palestina de acúmulo de armamentos, centrada no ataque e na destruição de um país legalmente constituído, vai-se engendrando, astutamente, no âmago emocional da opinião pública mundial, uma espécie de consenso cínico e induzido em relação às ações israelenses, tendo como analogia a tragédia de horror do Holocausto. Assim, qualquer iniciativa de Israel no campo de defesa militar já nasce condenada a priori pela natural probabilidade, em seu decorrer, de produzir vítimas, principalmente civis e particularmente crianças, no lado agressor, o que se constituiria, segundo essas vozes espertas e trapaceiras, em um arremedo da estratégia da abominável máquina nazista que teve por objetivo suprimir o povo judeu do planeta.

Tal tentativa de estabelecer um vínculo comparativo entre as ações israelenses e a crueldade imposta por um regime político-ideológico que, entre outras aberrações, conduziu centenas de milhares de crianças às câmaras de gás, só pode ser entendida como um deboche ou uma provocação. “Pois os campos de extermínio não apenas fabricavam cadáveres, mas se destinavam à destruição prévia de almas”, explica Neiman, para quem todos os processos de humilhação, indignidade e de erradicação da identidade e da vontade humanas aos quais as vítimas eram submetidas, destinavam-se a destruir o próprio conceito de humanidade dentro delas. Uma situação diferente da que ocorre em combate, no enfrentamento e na resistência armada, quando “instantes heroicos capazes de triunfar à própria morte” se incorporam ao contexto.

Intenções e visões

Nesse cenário aberto à manipulação de jogos conceituais sobre males morais e culpabilidade, tema de especial valor e sempre presente na dialética judaica do século 20, observa-se que os fatos e as imagens tendem a se dissociar das argumentações e até torná-las irrelevantes, como ensinou a guerra de Gaza. Mas, mesmo assim, é preciso refletir na noção de “intencionalidade” que fomenta os atos de terror do Hamas. “Como os terremotos, os terroristas atacam aleatoriamente: quem sobrevive e quem morre dependem de contingências que não podem ser merecidas ou evitadas” (Neiman).

Contudo, a visão da calamidade, do sofrimento e da dor afeta e desestrutura o ser humano, não importando a cor e o credo, que sob o seu impacto recompõe naturalmente algumas referências ou exigências acerca de padrões para avaliação do aceitável e do justo. Em mentes sensíveis e criativas, o fenômeno se expande e adquire dimensões artísticas e literárias ilimitadas, transfigurando-se em filmes memoriais – o mea-culpa “Valsa com Bashir” -, odisseias rocambolescas e exposições apocalípticas, mas nem por isso desimportantes ou desmerecedoras de atenção e análise. É o caso do livro “The Yiddish Policemen's Union”, do norte-americano Michael Chabon, traduzido no Brasil sob o título “Associação Judaica de Polícia” (2009). No enredo, o estado de Israel foi derrotado em 1948 e os judeus sobreviventes do Holocausto foram viver provisoriamente no Alaska, de onde, 60 anos depois, são forçados a ir embora por uma decisão dos Estados Unidos.

Já na exposição futurista “Exodus 2048”, do israelense Michael Blum, o novo estado de Israel fica em Uganda, na África. A debandada da população de Israel, segundo o autor, se daria um ano antes, no final de 2047, e muitos israelenses, duas décadas depois, estariam em campos de refugiados na Holanda. A representação desses campos foi vista por centenas de visitantes no New Museum, em Nova York, em 2009.

Essas projeções lúgubres evocam, essencialmente, a simbologia medieval do judeu errante e sem pátria ainda recorrente no imaginário coletivo e que, de tempos em tempos, é reavivada de maneira irreverente e até desconcertante. Mas o fato é que a insurgência na literatura, nas artes e demais áreas do pensamento, nos momentos de crise e nas guerras contra Israel apresenta-se como um desafio de grandiosa proporção: o de testar, acintosamente, a incondicionalidade de um compromisso milenar assumido há mais de 3.300 anos, na aridez do deserto do Sinai, por um povo então recém liberto dos grilhões da escravidão. Vínculo posto à prova, mais uma vez em Gaza, há um ano, sem as sutilezas e manhas que floreiam os tempos de paz.